terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A reincidência enquanto instrumento estigmatizador

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As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes,
os criminosos, os boêmios, os ciganos, os vagabundos,
os gigolôs, os malandros, os homossexuais e os mendigos
sãos os desviantes sociais, percebidos como incapazes
de usar as oportunidades para o progresso.
Falta-lhes moralidade.
(Ervin Goffman)  

Estigma[1], para os gregos, era um termo empregado para designar sinais corporais com os quais se procurava evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre a moral daquele que os apresentava.
Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, criminoso, alguém marcado para sempre e que deveria ser evitado, não tocado. O estigma era associado a algo de ruim.
Na era cristã, o estigma apresentou-se sobre duas novas facetas: como sinais corporais de graça divina (os estigmas de Cristo crucificado, por exemplo) e como distúrbio físico.
Na atualidade, o termo é mais usado na acepção original grega, representando algo de mau, uma desgraça (do italiano disgraziato: infeliz, deformado).
Para Goffman o indivíduo apresenta-se com uma identidade social virtual - aquilo que imputamos ao indivíduo - e com uma identidade social real – atributos que ele prova possuir. E não raras vezes a identidade social virtual é diversa da identidade social real. Quando essa discrepância ocorre, acaba por estragar a identidade social do indivíduo, afastando-o da “sociedade e de si mesmo de tal modo que ele acaba por ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo não receptivo”.
O estigma pode apresentar-se a partir de uma deformidade física, do caráter individual moral ou da raça/religião/nação. Alguém pode ser estigmatizado por ser portador de alguma “deficiência” física, pela aparente “deficiência” moral[2] (desempregado, malandro, vadio, preso, viciado), ou por ser oriundo de determinada classe social, país ou seguidor de determinada religião.
O estigma é tão representativo em nossa cultura que se acredita que o estigmatizado não seja um humano “normal”, derivando, daí, as discriminações, onde os termos pejorativos estigmatizantes acabam por reduzir o indivíduo a um “ser” cego, aleijado, criminoso, homossexual, malandro etc.
Explica Goffman que “construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original”.
Também o processo penal pode ser caracterizado como um instrumento estigmatizador, o qual se constitui num fardo que o acusado carrega sozinho. Só quem já foi alcançado pela grande e pesada “mão” da agência de controle penal consegue dimensionar quão representativo é responder a um processo crime. Mesmo com uma absolvição, a marca indelével de ter sido processado acompanha o sujeito pelo resto de sua vida.
Vez ou outra, já quase no esquecimento, terá alguém ou uma situação que o faça lembrar-se do processo crime que respondeu, obrigando-o a reviver todo aquele passado que procura esconder. Eventual absolvição não altera a marca, já que a culpa, como lembra Bauman[3], nada mais é senão o próprio fato de haver sido acusado, de ter sido levado a julgamento e essa é uma culpa que não se pode negar, por mais que demonstre sua inocência e por mais sólida que seja a prova que colija para sustentar a demonstração.
Se o fato de ser processado criminalmente já marca o sujeito, a condenação estigmatiza-o ainda mais, seja pela desconstrução psíquica do ser, a partir de uma internacionalização do adjetivo criminoso, seja pela exteriorização à sociedade de sua condição de condenado. 
A sociedade enquanto instituição estigmatizadora é até aceitável, frente a questões culturais que não se modificam em períodos curtos, onde o “ser” perfeito e sem defeitos que não tem nada a reclamar é o homem jovem, branco, casado, pai de família, urbano, heterossexual, cristão, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, sadio, bom peso, boa altura, esportista (Goffman).
Agora quando a estigmatização parte do próprio Estado, a situação agrava-se, pois além de ocorrer a sua institucionalização, a mensagem que o Estado repassa à população é que o estigma apresenta-se como um comportamento legítimo e aceitável.
A reincidência, institucionalizada e aceita pelo Estado, é o exemplo mais claro da estigmatização atribuída a alguém. É a marca que o Estado impõe a todos os condenados. É a etiquetização do “mau”, do “erro”, do ser humano “menos” humano, é a diminuição do indivíduo em comparação ao outro.
Já não basta toda a carga e embaraço que o processo penal impõe ao acusado, é necessário que a condenação deixe marcas no indivíduo por toda a sua vida, ultrapassando o limite temporal previsto no artigo 64, inciso I do CP. Acaba, após 5 anos, a reincidência legal, mas não a social. O condenado é “carimbado” como alguém que não pode ser esquecido pelo que fez.
A reincidência é um símbolo do estigma, empregado contra a vontade do informante (Goffman) e serve para reduzir o valor do indivíduo. 
O estigma da reincidência é tão forte que pode alcançar inclusive terceiros que se relacionam com o estigmatizado. É comum policiais abordarem para averiguação alguém que já teve “passagem” policial e revistarem todos os que com ele se encontram. É como se o “estar” com alguém que já teve “passagem” simboliza que não sou “confiável”. 
Goffman aprofunda o debate ao teorizar que “estar com ‘alguém’ é chegar em alguma ocasião social em sua companhia, caminhar com ele na rua, fazer parte de sua mesa em um restaurante, e assim por diante. A questão é que, em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem o indivíduo está acompanhado pode ser usada como fonte de informação sobre a sua própria identidade social, supondo-se que ele é o que os outros são. O caso extremo, talvez, seja a situação em círculos de criminosos: uma pessoa com ordem de prisão pode contaminar legalmente qualquer um que seja visto em sua companhia, expondo-se à prisão como suspeito”.
Nessas circunstâncias, o indivíduo deixa de ser alguém pelo que é, para ser alguém pelo que fez. Não interessa mais o que ele pensa ou faz, pois a marca do seu “deslize” é o que sobressai e prevalece.
É usual encontrar sentenças penais onde consta que “o acusado é reincidente, tendo um perfil voltado ao crime”, ou seja, não se julga o fato presente, mas o fato pretérito.  É como se a reincidência autorizasse ou facilitasse a condenação. A consciência do julgador fica mais tranquila para condenar.


[1] As referências sobre a categoria Estigma foram extraídas da obra “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, de Erwing Goffman, 4 ed., Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988, 158 p.
[2] Segundo padrões de “normalidade” estabelecidos pela sociedade.
[3] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 95.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Os efeitos da intempestividade da alegação final por parte do Ministério Público: o respeito à paridade de armas


paridade33.blogspot.com

É muito comum encontrarmos processos crimes onde o Ministério Público tenha apresentado as alegações finais de forma intempestiva.

A partir daí, procuro analisar quais são os efeitos desta intempestividade. Será o processo anulado, deverá a alegação final da acusação[1] ser desentranhada do processo, ou poderá a defesa ter o mesmo prazo que a acusação para apresentar referida peça processual.

Neste momento não será analisado se o Ministério Público tem ou não o dever de apresentar a alegação final, mas apenas os efeitos de sua apresentação a destempo.

O STJ, através da sua 5ª Turma, pelo voto do Min. Felix Fixher, decidiu que a intempestividade na apresentação da alegação final por parte do parquet não acarreta a nulidade do processo:
 
A apresentação intempestiva das alegações finais pelo Ministério Público configura mera irregularidade, pois o prazo especificado no Código de Processo Penal é impróprio[2].

Este mesmo entendimento, amparado em argumento diverso, também foi proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

As alegações finais do Ministério Público apresentadas a destempo não equivalem à sua ausência, a ensejar a nulidade do processo, eis que a sua tardia apresentação nenhum prejuízo trouxe à defesa, permitindo-lhe conhecer as teses da acusação. [3]
 
Não há falar em nulidade processual pela apresentação intempestiva das alegações finais do Ministério Público Federal, ante a inexistência de prova de efetivo prejuízo à parte. [4]

Por sua vez, o antigo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo entendeu pelo não desentranhamento da alegação final intempestiva:

Processo crime  Nulidade - Inexistência - Alegações finais extemporaneamente pelo Ministério Público - Mera irregularidade - Desentranhamento indeferido - Preliminar repelido. "Tratando-se de ação penal pública, indispensável a apresentação de alegações finais pelo órgão da acusação, ato essencial do processo. O eventual excesso de prazo somente poderia ser corrigido com a solicitação ao Procurador-Geral da Justiça de designação de outro representante do Ministério Público a oferecê-las. Jamais pelo desentranhamento das alegações tardias. [5]

Ora, se não se anula o processo e nem se autoriza o desentranhamento da peça processual, qual o efeito de sua apresentação extemporânea?

O contraditório, princípio consagrado no artigo 5º, inciso LV, da CRFB/88, é entendido como igualdade de condições ou paridade de armas, onde no "jogo processual" as partes (MP e defesa) devem iniciá-lo munidos com as mesmas “armas”, numa igualdade de direitos e deveres. Se ambos tem o direito de se manifestar sobre todos os documentos/fatos/atos existentes nos autos e também de contradizer as teses opostas, tem, da mesma forma, iguais deveres de cumprir os prazos processuais, sob pena de sanções.

Segundo Paulo Rangel[6] o "princípio do contraditório traz, como consequência lógica, a igualdade das partes, possibilitando a ambas a produção, em idênticas condições, das provas de suas pretensões".

Alexandre de Moraes[7], por sua vez, conceitua o contraditório como sendo “a própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética do processo (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor”.

Por fim, vale o ensino de Leonardo Greco[8]:

A doutrina processual sempre subordinou a garantia do contraditório à igualdade das partes, a que hoje se denomina de paridade de armas, pois, para que as partes possam influir eficazmente na formação da decisão judicial, todas elas devem desfrutar das mesmas faculdades e nenhuma delas deve ter mais do que as outras a possibilidade de oferecer alegações, propor e produzir provas.
Toda parte em um processo deve ter a possibilidade de expor e defender a sua causa em condições que não a inferiorizem perante a outra. Sem isso, não há garantia de um processo justo.
O contraditório pressupõe, portanto, que nenhuma das partes seja posta em posição de desvantagem em relação à outra na possibilidade de planejar a sua defesa e de realizá-la. Ambas as partes devem ter as mesmas oportunidades de sucesso no ganho da causa. Para assegurar essa paridade de armas, o juiz deve suprir as deficiências defensivas da parte em desvantagem. Isso é particularmente importante quando uma das partes está em situação de superioridade, como a Administração Pública.

 
Penso que a alegação final tardia por parte do Ministério Público deveria ser desentranhada dos autos, contudo uma forte corrente entende que é peça obrigatória e como tal não pode faltar no processo.

Então, no mínimo, deve a defesa, que fala depois, ter o mesmo prazo que o Ministério Público, ou seja, se a acusação apresenta a alegação final num prazo de 25 dias[9], a defesa poderá apresentá-la neste mesmo prazo, sob pena de afrontar a paridade de armas, a igualdade processual, o contraditório.

Ora, se a acusação teve um prazo de 25 dias para elaborar a sua peça processual, com calma, pesquisa e organização, é desarrazoável exigir da defesa uma manifestação em 5 dias (prazo legal previsto no CPP).


[1] Aqui nos referimos apenas às ações penais públicas, onde o Ministério Público é o detentor do direito de ação, já que na ação penal privada o não oferecimento da alegação final por parte do querelante (acusação) acarreta a perempção e a extinção da punibilidade (artigos 60 III do CPP e 107, IV do CP).
[2] HC 123544/ES - Julgamento: 04/06/2009.
[3] ACr 1268739.
[4] ACr 26464/PR.
[5] RT 588/341.
[6] Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.18.
[7] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.124.
[8] GRECO, Leonardo. A busca da verdade e a paridade de armas na jurisdição administrativa in Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 9 - Dezembro de 2006, disponível em http://fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista09/Artigos/LeonardoGreco.pdf, acesso em 05fev de 2013.
[9] Lembrando que se o processo for de réu preso, o excesso de prazo pode acarretar, também, a soltura do acusado.