quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Há relação entre Bauman e o “pau de selfie”?

 

Certamente Bauman não irá ler este texto. Ainda bem, pois não iria gostar nada em ver sua teoria sociológica atrelada a este modismo do verão brasileiro, popularmente denominado “pau de selfie” (ou extensor retrátil).
Contudo, penso que este adereço (vou chamá-lo assim, pois muitos fazem dele extensão decorativa do próprio corpo) que se implantou ao corpo de muitos cidadãos tem relação com o pensamento que norteia a vasta obra de Bauman: muitos dos problemas atuais decorrem do excesso de individualismo, que leva ao afastamento dos cidadãos da vida em comunidade.
Numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. Nosso dever, puro e simplesmente, é ajudar uns aos outros e, assim, temos puro e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que precisamos. Desta forma, segundo ele, comunidade sugere coisa boa[1].
Contudo, reconhece, comunidade é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance, mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir.
Claro que sua ideia impulsiona questionamentos muito mais profundos e complexos, como o de que não se consegue viver em comunidade sem abrir mão da liberdade e da segurança (elas podem ser bem ou mal equilibradas, mas nunca inteiramente ajustadas e sem atrito), caso contrário viveríamos em uma comunidade fechada, afastando todos que não fazem parte dela. E isso sufoca. Aprisiona. Amedronta.
A febre do verão brasileiro, o “pau de selfie”, visto com mais frequência (e que frequência) no litoral brasileiro, inundou todo o país. Falando especificamente de Balneário Camboriú/SC, onde resido, percebo como é comum, e até constrangedor, a quantidade de pessoas que passeiam pelas ruas com este instrumento. Até mesmo ciclistas pedalam “armados” com o “pau de selfie”. E tiram selfies (com a ajuda do adereço) pedalando, numa cena, no mínimo, estranha. Alguns pais seguram em uma das mãos a cadeira de praia e na outra o adereço, enquanto o filho pequeno vem atrás, sozinho, pela sombra.
Não estou a criticar o seu uso, que nos seus 15 minutos de fama não deve passar do carnaval, mas a refletir o que o seu uso pode simbolizar, no tocante ao comportamento humano.
Posso até compreender a necessidade de se usar tal adereço por grupos de pessoas, onde a “selfie” necessite de um ângulo maior para que todos sejam enquadrados na foto. Mas não compreendo o seu uso individualmente ou em dupla, de forma rotineira, como tenho visto.
Ora. Deus, antevendo a “selfie”, nos proporcionou uma extensão natural, o braço, cuja distância do corpo é ideal e suficiente para o auto-retrato. E se não for suficiente ou se deseje um ângulo mais amplo, penso que o método tradicional que vigorou até o início deste verão seja o mais adequado: solicitar um favor ao “estranho” que passa ao seu lado.
Eu mesmo, quantas vezes já fui solicitado para tirar fotos de casais, pessoas solitárias, ou até mesmo de grupos, para que ninguém ficasse de fora da lembrança, e me sentia, naquele momento, importante por ter sido notado (mesmo que para satisfazer interesses de terceiros) e fazer parte, de alguma forma, daquela lembrança. Sim, porque depois da foto sempre vem a tradicional pergunta: Ficou boa? E a responsabilidade é toda sua de dizer que sim, ou estragar um momento único, caso tenha ficado uma M.
Inúmeras vezes também solicitei o favor de terceiros.
Mas o que isso tudo tem a ver com Bauman?
Viver em comunidade é justamente viver em aproximação, em contato, também, com estranhos. Parece que ninguém mais deseja que o outro faça parte do seu momento. Eu me basto. Não preciso solicitar a gentileza de terceiros.
E este é o ponto. A partir da ideia de que eu me basto e me autofotografo com o “pau de selfie”, fazendo disso uma regra que elimina toda a possibilidade de me aproximar do outro, de manter contatos, mesmo que rápidos, alimento uma individualidade extremada que dificulta o porvir de uma comunidade.
Não é o adereço que impedirá o convívio em comunidade, por favor. O utilizo como um exemplo atual e simbólico do nosso modo individualista de ser e viver. E nisso me incluo, não com relação ao adereço, mas em tantas outras posições individualista.  
Muitos dizem que não pedem para estranhos tirar uma foto, com medo de ter a máquina ou celular subtraídos. Falta confiança. O medo[2] torna as relações líquidas. Como disse Bauman, não se convive em comunidade sem abrir mão da liberdade e da segurança, cujos valores não existem sem atrito.
Vivemos cada dia mais em guetos, os quais podem ser voluntários ou reais. Os reais são lugares dos quais não se pode sair (habitantes de guetos negros norte-americanos que não podem casualmente atravessar para o bairro branco, sob pena de serem seguidos e detidos), enquanto os guetos voluntários, ao contrário, tem por função impedir a entrada de intrusos, enquanto os de dentro podem sair à vontade[3]
Posso estar exagerando, mas me permito a refletir e a reflexão é sempre válida.
Pensemos nisso. Menos “pau de selfie” e mais comunidade.
REFERÊNCIAS
CHAVES JR. Airto; OLDONI, Fabiano. Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

[1] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 8-10.
[2] Abordo o medo no livro que escrevi juntamente com Airto Chaves Jr.: Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003,  p. 106.