segunda-feira, 12 de agosto de 2019

A CONSTRUÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL A PARTIR DA COMUNICAÇÃO NÃO-VIOLENTA

publicado originalmente em www.emporiododireito.com.br

Os cursos de direito ensinam a técnica da sentença judicial, as etapas de sua elaboração, o que deve constar no relatório, na fundamentação e no dispositivo.
Aprende-se quais as leis devem balizar a sentença, que ela deve estar na medida do que foi pedido, que não há hierarquia entre as provas, as quais o juiz irá valorar de acordo com seu entendimento, a partir do princípio da livre apreciação da prova legalmente produzida.
Nos concursos necessários para o ingresso nas carreiras da judicatura, ao candidato novamente é exigido o conhecimento da técnica jurídica e dos dispositivos legais para a elaboração da sentença.
Já no exercício da função jurisdicional, passa a elaborar decisões com um olhar muito voltado ao tecnicismo, deixando de observar-se enquanto humano com desejos e necessidades naturais de qualquer humano e o quanto isso pode interferir na decisão a ser proferida.
A CNV foi proposta por Marshall Rosenberg, a partir do livro Comunicação Não-Violenta. Segundo o autor, a CNV se baseia “em habilidades de linguagem e comunicação que fortalecem a capacidade de continuarmos humanos, mesmo em condições adversas”.[1]
Para ele, a CNV
nos ajuda a reformular a maneira pela qual nos expressamos e ouvimos os outros. Nossas palavras, em vez de serem reações repetitivas e automáticas, tornam-se respostas conscientes, firmemente baseadas na consciência do que estamos percebendo, sentindo e desejando.[2]
Em suma, a CNV “nos ensina a observarmos cuidadosamente (e sermos capazes de identificar) os comportamentos e as condições que estão nos afetando. Aprendemos a identificar e a articular claramente o que de fato desejamos em determinada situação. A forma é simples, mas profundamente transformadora”.[3]
Ela está alicerçada em quatro componentes: OBSERVAÇÃO, SENTIMENTO, NECESSIDADE e PEDIDO.
Explica Rosenberg que
primeiramente, observamos o que está de fato acontecendo numa situação: o que estamos vendo os outros dizerem ou fazerem que é enriquecedor ou não para nossa vida? O truque é ser capaz de articular essa observação sem fazer nenhum julgamento ou avaliação - mas simplesmente dizer o que nos agrada ou não naquilo que as pessoas estão fazendo.[4]
É o movimento de observar sem julgar.
Na sequência, devemos identificar “como nos sentimos ao observar aquela ação: magoados, assustados, alegres, divertidos, irritados etc.”[5]
O(s) sentimento(s) lhe geram, naturalmente, uma necessidade, a qual precisa ser compreendida. Por exemplo, a mágoa pode gerar um desejo de vingança, o medo uma necessidade de fuga, a tristeza o desejo de chorar ou de reparar a dor do outro, ou até mesmo um simples pedido de desculpas. Segundo Rosenberg, as “necessidades estão ligadas aos sentimentos que identificamos aí”.[6]
O último componente é o pedido. Muitas vezes a raiva, que desencadeou uma necessidade de vingança, pode ser expressada a partir de um pedido: O que você fez me causou muita raiva e um desejo de me vingar, por isso lhe peço que não faça mais isso.
Veja que este pedido é uma expressão verdadeira do que o sujeito sente, necessita e quer. Se estas etapas forem internalizadas e praticadas, muitos atos de violências são evitados, pois a maioria das agressões, que se iniciam pela forma verbal, só ocorrem por que não há uma comunicação clara entre os interlocutores. Por não conseguir expressar ao outro claramente o que desejo, acabo, quase sempre, o ameaçando, o que gera uma crise na comunicação e, muitas vezes, o conflito.
Caso no exemplo acima eu tivesse elaborado o pedido da forma como tradicionalmente fizemos - se você fizer isso novamente eu te mato, ou eu te bato -  haveria uma ameaça, um enfrentamento a motivar o outro a repetir a agressão, com fins que podemos imaginar qual seria.
A CNV pode ser utilizada para me observar na comunicação com o outro, mas também observar o outro quando se comunica comigo, ocasião em que eu observo o fato, verifico qual o sentimento isso gerou nele (para isso preciso pedir a ele para se observe), qual a sua necessidade (também em forma de pergunta, para fazer com que ele expresse a sua necessidade) e, por fim, o que ele deseja de mim (fazendo com que ele elabore o pedido de forma clara e objetiva).[7]
Convenhamos que não é algo fácil de ser feito. Precisa de muita prática, equilíbrio, autoconhecimento e hábito, pois naturalmente voltamos a nos comunicar de forma violenta após algumas tentativas de se praticar a CNV.
Pois bem. Compreendido superficialmente o que seria a CNV, o que não nos isenta de estudá-la mais detalhadamente, vamos procurar incorporá-la à sentença judicial.
Quando o juiz recebe uma inicial, seja na área cível ou criminal, após elaborar sua leitura, é natural tenha uma impressão dos fatos apresentados, os quais, se forem graves, podem já lhe chamar uma atenção para sua veracidade. Imagine-se uma denúncia de estupro, um homicídio, ou uma ação de divórcio com guarda do filho, onde se relata agressões ou alienação parental por parte de um dos pais.
Por mais que não admitamos, é natural que um juiz, já na leitura da petição inicial, estabeleça seu convencimento, mesmo que provisório. Muitas vezes esse convencimento não será afastado com a contraprova da parte contrária. Há, bem sabemos, um pré-julgamento no íntimo do julgador, que só será expressado ao final, após o devido processo legal, o qual, muitas vezes, não servirá para mudar o convencimento firmado no início do processo.
E isso só acontece com ele? Logicamente que não. Acontece com qualquer um de nós. Basta observar nossos julgamentos diários sobre fatos que nos chegam de forma unilateral. Somos seres que pré-julgamos com a maior naturalidade e com a mais pura certeza de estar fazendo a coisa certa.
O ideal seria que todas as comunicações fossem alinhadas a partir da CNV, até mesmo a decisão judicial, que não deixa de ser uma comunicação, por meio da qual o judiciário se expressa às partes e à sociedade sobre o fato litigioso.
Então, já pensou como seria uma decisão formatada a partir da CNV?
Ao receber a inicial ou tomar conhecimento dos fatos, o magistrado deveria observar todo o ocorrido que lhe foi trazido, sem exercer qualquer tipo de pré-julgamento em seu íntimo.
Após conhecer os fatos, mesmo que unilateralmente apresentados, o magistrado deve observar quais sentimentos lhe geram. É possível que o fato seja semelhante a algum por ele já vivenciado, que ele despreze aquele tipo de conduta, ou que considere inexplicável o ser humano agir daquela forma, enfim, há uma infinidade de razões que pode fazer com que o fato observado promova sentimentos no juiz.
Conhecido esse sentimento, deve o juiz buscar identificar qual seria a necessidade que lhe surge. A desaprovação de um estupro, pode fazer emergir sentimentos de raiva e lhe sugerir uma necessidade de vingança. A partir desta constatação, estaria ele apto a sentenciar o caso com a imparcialidade que a função exige? Seria ele um juiz que iria decidir com base nos fatos concretos ou já estaria com uma tendência a dar determinada decisão, para satisfazer uma necessidade pessoal?
Uma ação de guarda, onde a mãe apresenta acusações graves contra o genitor. Imagine-se o juiz já tendo vivenciado, em sua relação conjugal, uma situação semelhante, onde a mãe de seu filho tivesse feito acusações parecidas, ou até mesmo com algum familiar, em que, por exemplo, tivesse acompanhado a disputa da guarda do neto, entre sua filha e o pai da criança.
Quais os sentimentos que esses fatos lhe trariam? Quais as necessidades que isso lhe geraria? Estaria em condições de julgar este processo sem que estes sentimentos e necessidades o influenciassem?
Veja que não estamos a dizer que o juiz decidiria contra uma das partes, de forma leviana, apenas por que se identificou com a parte contrária. Estamos a afirmar que ele poderá agir assim inconscientemente, pois por desconhecer os sentimentos que o fato lhe gerou, sua decisão, muito provavelmente, seria no sentido de satisfazer as necessidades vindas deles.
Ao se deparar com duas provas, iria ter que valorar uma mais do que a outra e, neste momento, muito provável que aceite a prova que lhe autorize a decidir no sentido a satisfazer suas necessidades enquanto humano, surgidas a partir dos sentimentos gerados pelo fato analisado.
O juiz que consiga observar o fato, sem pré-julgar, perceber quais sentimentos esse fato lhe causa e quais as necessidades que disso advém, está mais consciente para decidir com base no que lhe foi apresentado e não no que ele deseja.
Claro que se o juiz tiver que conceder ou negar uma antecipação de tutela ou uma prisão cautelar, irá se pronunciar a partir das provas que lhe são apresentadas de início, contudo não poderá fechar questão sobre os fatos, em um pré-julgamento.
A observação dos fatos, nesta situação, é possível sem que para isso o juiz, em seu íntimo, se convença sobre a procedência ou improcedência do pedido. Sabemos que isso é muito difícil, que há um limite muito tênue entre o decidir sem pré-julgar, mas é algo a ser buscado pelo magistrado, cuja função exige, além do domínio da técnica, o domínio das suas emoções e necessidades, pois “um tipo de comunicação alienante da vida é o uso de julgamentos moralizadores que subentendem uma natureza errada ou maligna nas pessoas que não agem em consonância com nossos valores”.[8]
Em síntese, o exercício da CNV é um hábito que exige o autoconhecimento, um “olhar amorosamente para dentro de si, com essa consciência de incompletude”, o que nos tornará “mais lúcidos com o que em nós encontramos ou reencontramos, e nos tornar mais humanos” para compreender o mundo do outro.[9]
Essa reflexão não pode ser vista como uma crítica ao julgamento feito pelo juiz. O ato de julgar é o exercício de uma função jurisdicional dentro do ordenamento jurídico, perfeitamente legal e esperado pelos que buscam o litígio.
O que se pontua é a qualidade emocional do juiz ao julgar. Está conseguindo separar o que é das partes e o que é seu? As decisões proferidas estão a refletir realmente as provas dos autos ou o que o juiz deseja que seja? Até que ponto seus sentimentos e necessidades estão influenciando a tomada de suas decisões?
Esses pontos precisam ser refletidos. Ninguém está a dizer que é fácil se comunicar a partir da CNV, que dirá fazer uma sentença.
Porém impossível também não é e para isso necessário que o ser-juiz compreenda a importância de fazer o caminho do autoconhecimento, oportunidade que passará a perceber os sentimentos e as necessidades gerados pelos fatos que lhe chegam para julgar, pois a aplicação mais decisiva da CNV, “talvez seja na maneira que tratamos a nós mesmos”.[10]


Notas e Referências
[1] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 21.
[2] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 21-22.
[3] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 22.
[4] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.
[5] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.
[6] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 25.
[7] “O outro aspecto dessa forma de comunicação consiste em receber aquelas mesmas quatro informações dos outros. Nós nos ligamos a eles primeiramente percebendo o que estão observando e sentindo e do que estão precisando; e depois descobrindo o que poderia enriquecer suas vidas ao receberem a quarta informação, o pedido” (ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 26).
[8] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 37.
[9] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; OLDONI, Everaldo Luiz. Justiça Restaurativa Sistêmica. Joinville: Manuscritos Editora. 2018. p. 48.
[10] ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 2 ed., São Paulo: Ágora, 2006. p. 179.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

JUSTIÇA RESTAURATIVA E DIREITO SISTÊMICO: CAMINHOS PARA A CONSTRUÇÃO DA PAZ

Artigo originalmente publicado em emporiododireito.com.br
Fabiano Oldoni
Everaldo Luiz Oldoni

“Paz interior é aquele ponto sossegado que buscamos,
bem no centro do redemoinho, no caldeirão que é a vida”.
Kathy Jone
1. A CONSTRUÇÃO DA PAZ COMEÇA EM CADA UM DE NÓS
Nos últimos 100 anos, passamos de 2,5 para mais de 7 bilhões de habitantes no planeta. A projeção para 2030 é de quase 9 bilhões; em 2100 mais de 11 bilhões. Tudo bem que possivelmente não estejamos por aqui em 2100, mas muitos daqueles que amamos e que nos preocupamos em deixar recursos para bem viver, estarão.
Como será reunir tantas pessoas num mesmo lugar onde hoje já está apertado e cerceado? A natureza conseguirá suprir todas as demandas que virão? O planeta certamente comporta todas essas pessoas, mas com que qualidade suas vidas se desenvolverão?
Iradj Roberto Egharari faz uma analogia interessante:
...poderíamos dizer que o mundo se assemelha ao ser humano que está doente e combalido, cujos sentidos estão perdendo as suas capacidades. Os seus olhos não mais vêem, seus ouvidos estão ensurdecidos e suas forças cada vez mais enfraquecidas. Há a necessidade de um médico competente, que possa atender a esse corpo agora desfalecido, dados os conflitos, as desigualdades, as injustiças, as exclusões que partem de todos os lados e que incidem sobre o corpo da humanidade. Esse médico deve ter o dedo no pulso dessa humanidade desolada e aplicar o remédio que seja apropriado e necessário à época em que vivemos. Numa época em que o racismo, o nacionalismo, os extremos de riqueza e pobreza, as desigualdades de gênero e a falta de uma educação universal tornam-se ainda mais intensificadas pela contenda entre as religiões, elementos que dilaceram o corpo da humanidade, um novo remédio deve ser aplicado. Da mesma forma que no corpo humano, quando uma doença acomete uma parte do todo o corpo se mobiliza para a proteção de todo o sistema, essas doenças que acometem o corpo da humanidade necessitam de uma solução abrangente: essa solução, esse remédio, esse elixir poderoso, nada mais é que a unidade da humanidade. [1]
Produzir esse “remédio” é tomar novas consciências que produzam comportamentos menos competitivos, cumulativos, que se voltem para a frugalidade, a simplicidade voluntária, o conforto essencial, e que tenham muito claro que somos um todo, resultado da relação das partes, e que nossa parte precisa ser pensada e feita na coexistência com equilíbrio.
Nossa espécie cria, através da evolução científica e tecnológica, instrumentos capazes de transformar o planeta, porém, ao mesmo tempo, acaba por se transformar numa espécie com potencial de provocar o próprio aniquilamento. Há milhares de anos os dinossauros foram extintos por fatores externos. Hoje, somos nossa própria ameaça.
Muitas espécies extintas, cada vez se consome mais, muitos recursos estão sendo exauridos e diante da escassez dos recursos naturais, os conflitos entre governos, povos e nações não demora a aumentar, na disputa violenta pela sobrevivência, gerando, inevitavelmente, maior sofrimento humano.
Antes se brigava por territórios, minerais e produtos com alto valor comercial. Hoje as disputas são por produtos e recursos da biodiversidade. Verifica-se na história humana polos extremados de criação, inspiração e, ao mesmo tempo, estupidez e barbárie.
Não se pode esquecer que somos natureza e fazemos parte da biodiversidade. Os corpos carregam o meio ambiente em que estão inseridos, e quando este meio é afetado, se afetam as dimensões físicas, emocionais, mentais e espirituais que somos todos.
Hoje se têm excesso de lindas frases prontas, excesso de teorias recheadas de palavras impactantes. Um arsenal de técnicas e livros de autoajuda estão tentando preencher o vazio do Ser, que sente estar fora do seu lugar, sente estar numa arena ou em pequenos e frios ringues, onde existem poucos atalhos que promovem o encontro, e muitos muros que escondem vaidades, egos inflados e cheios da soberba do saber.
Nessas circunstâncias as forças internas se exaurem com rapidez, e o espirito, a alma, ficam à mercê, esquecidos e perdidos num deserto de dimensões não educadas para serem reconhecidas como parte da integralidade humana.
De que adianta saber tanto, sair na defesa de teses e publicar pesquisas inúmeras sobre a necessidade da paz, e não se voltar para o mais simples, aquilo que está presente em nós e no outro, o essencial invisível que não é olhado por pura falta de tempo?
Falta tempo para poder olhar o outro sem pré-juízos; falta tempo para viver sem precisar disputar e defender verdades absolutas. É cansativo ter que competir, provar, ser bom aos olhos do mundo diuturnamente. O tempo para sentir e olhar para a simplicidade do ser, acaba por não existir. O objetivo continua em um único foco, o alvo é apenas saber para ter poder, geralmente sobre o outro. O excesso do pensar e o exagero da importância ao conhecimento lógico desmereceu o transcendental, o básico. Não somos deste mundo, estamos neste mundo.
É tão pequeno dedicar toda a energia para simplesmente vencer. Não é preciso “vencer”, é preciso se deixar ser vencido por outros aspectos que fazem parte do humano que se é.
As intuições, sensações, percepções, sonhos, buscas, singularidades, especificidades, entre tantos outros tópicos, compõe o ser humano e estão submersos no excesso, na correria diária em função da cultura patriarcal implantada, que usa a repressão, a dominação e que se identifica apenas com o comércio, a economia e as finanças, gerando mecanismos de violência e guerra entre as classes, nos processos de produção, entre tantos outros aspectos desgastados da nossa realidade cartesiana e consumista.
Por que a cultura dominante ainda se estrutura na “vontade de poder” sobre a natureza, poder sobre o outro, poder sobre as nações, os mercados, gerando medo e incitando à guerra? Por que mantemos a humanidade dividida em algumas regiões demográficas ou segmentos sociais?
Cristóvam Buarque[2] diz que “o mundo global atual formou uma humanidade dividida: no lugar da cortina de ferro, uma cortina de outro; de um lado um arquipélago de pobres do mundo diferenciados em sua exclusão dos benefícios da modernidade e, de outro, um primeiro mundo internacional de ricos integrados nos mesmos modernos padrões de consumo e cultura”.
É a modernidade líquida de Bauman.
Se a realidade atual assusta, é momento de saber que o que se vive é o mapa das visões de mundo, é o resultado das ações que carregam o código genético dos pensamentos e sentimentos que são por nós alimentados e nutridos.
Parece que a saída diante de um mundo de mercado tão poderoso, é apostar numa sociedade auto responsável, consciente e em rede. É urgente entender que investir na consciência da educação dos valores humanos e ecológicos é o caminho mais econômico e eficaz.
Se a Paz é busca universal, será necessário combinar a democracia nacional com a solidariedade internacional. Uma busca para além da paz comercial, em direção a uma paz social que inclua a luta contra a pobreza e contra todas as formas de violência, sejam elas migratórias, culturais, tecnológicas, políticas, éticas etc.
Ter claro que a terra é um imenso condomínio onde cada povo, nação, tribo, mesmo dono de seus patrimônios, deve ter a noção e o respeito ao conjunto de regras comuns a toda humanidade.
É necessário sair da dicotomia, dos determinismos e simplismos, da competição polarizada da direita e esquerda, ir além da prática da liberdade e igualdade e incluir a FRATERNIDADE, que produz o altruísmo, a solidariedade e a tolerância para a diversidade. Com o “terceiro incluído”, a justiça cria sentido e corpo, e permite o encontro da paz pessoal que transborda para o social, produzindo o equilíbrio tão necessário na natureza que acolhe e sustenta a todos.
Buscar a democracia globalizada é ir muito além dos aspectos do ter, é dar o direito ao outro de ser na diferença das macro concepções. Enquanto se está globalizado em alguns aspectos, infelizmente na maioria dos aspectos humanos não se está.
Entender que a paz nasce no interior do homem, e é no amago que esse baluarte deve ser construído é o início da construção de um novo paradigma, o holístico, que se difere do atual paradigma analítico que vivemos e que apenas produz as explicações.
Passou da hora de superarmos o modelo dualista cartesiano, que olha o mundo como um grande relógio, sem vida, mas programado para sempre atuar da mesma forma. Uma visão ecológica, a partir da teoria dos sistemas, é essencial e urgente. Ver o mundo como um algo vivo, sempre em movimento e mutação.
Enquanto a academia encontra-se presa no século 19, a visão holística permite colher o melhor da idade média com o melhor da idade moderna e ampliar para uma visão transdisciplinar. O novo pode transformar o poder da manipulação, da avareza e dos lucros implacáveis, no poder pessoal, no poder da aldeia, da tribo, no poder do todo.
Acreditamos que a inteligência nos foi dada também para colocar limites à violência e dar sentido construtivo e justo para todos os habitantes do planeta, no entanto, o saldo atual é negativo e deficitário em muitos aspectos, podendo piorar ainda mais, caso nos faltar a coragem de fazer a nossa parte no processo de construção da paz.
Falar de paz apenas como conceito ou definição, é raso e deixa de produzir frutos reais.
Como falar e cultivar a paz se ainda não decido por ela? se ainda creio que ela deva ser forçada, manipulada apenas no exterior e não seja resultado de algo que se constrói no interior de cada um de nós?
A construção deve ser processual, as bases devem brotar do íntimo, ou seja, buscar as inspirações para a paz na própria vontade de querer a paz. Somos os únicos seres capazes de intervir nos processos da natureza e impulsionar ou estacionar a marcha da evolução. Não basta ser a favor da paz, é preciso praticar a paz.
Devido à falta de consciência e autoconhecimento e por ficar só no aspecto mental, onde os conteúdos são fragmentados, é comum deixar que as características primitivas e egóicas enclausurem o humano. Por crer estar separado/fragmentado, sente muito medo, medo do outro, medo de não dar conta, de não ter o suficiente, de não ser o melhor, e acaba criando na mente o que Pierre Weill chamou de “Fantasia da separatividade”.
A mente cria a fronteira, por acreditar estar separado de tudo e do todo, e isso passa a ser aterrorizante. Esse pensar vai contra a necessidade básica da alma humana de pertencer e estar inserido. Essa fantasia é criada apenas na mente, local de onde brotam os conceitos e as fronteiras são construídas. Somos muito mais que nossas informações e nossa capacidade de raciocinar.
Para sair da fragmentação da mente e encontrar a integralidade, o olhar precisa ser holístico, precisa buscar a inteireza do Ser e isso inclui uma ecologia pessoal, uma ecologia social, que é apenas o reflexo da pessoal, e uma ecologia planetária, que é a colheita das relações e interações pessoais.
Tudo parte da ecologia pessoal, aquela que olha o integral, representado pelos aspectos do corpo físico, do mental, do emocional e do espiritual, sendo este último o local onde se cultiva tanto a paz como a guerra.
Certos, pelo instinto, que é preciso sobreviver, e com o sentimento que Pierre Weil[3] denomina de fantasia da separatividade, o medo, que é a antítese do amor, fraciona e enclausura o Ser em papéis e máscaras penosas de usar e representar. O humano não cuidado em sua ecologia pessoal, torna-se um potencial agressor no social e uma grande ameaça na natureza. O humano não cuidado é uma poderosa máquina de produção e consumo a todo vapor, e dessa forma, cada um no seu mundo particular, faz dele o único lugar que realmente dá valor. O egoísmo impera, as guerras são potencializadas, as diferenças tiradas a limpo a qualquer preço e a fraternidade nunca tem vez.
A cultura da paz pede uma caixa de ferramentas flexíveis e diversificadas, onde se prepara para o combate, no entanto com armas diferentes. Não se promove a paz ao eleger certas circunstâncias e excluir outras, por mais que nos soem estranhas ou diferentes. A paz precisa existir na diversidade e o que sustenta essa paz deve ser embasado na essência de qualquer ser humano, seja ele de qualquer cor, etnia, orientação sexual, nível social etc.
É preciso sair da normose que provoca o aniquilamento e colocar-se a caminho, como numa crisálida que almeja e permite a metamorfose das novas consciências.
Temos muito exemplos de figuras que representam o amor não condicionado, que inspiram a arte de cuidar e mostram que a generosidade é um dos maiores atributos humanos. Bom seria se tivéssemos a ousadia de cultuar as memórias de agentes transformadores como Madre Tereza, Gandhi, Irmã Dulce, Dalai Lama e tantos outros.
Parece estranho falar de paz e perceber que nossos cultos são voltados para os mártires de guerras; estranho também é observar que as praças públicas cultuam pessoas que representam a vitória e que a vitória sempre traz escondida um lado que é derrotado, e que geralmente este lado é composto por fracos desfavorecidos pelo sistema que nos foi incutido desde que passamos a nos sentir separados.
Podemos nos perguntar com franqueza: Onde foi que nos perdemos? no que estamos nos transformando? para onde estamos nos direcionando e onde queremos chegar?
Nossos corpos estão destinados a viver cada vez mais, porém, nossas almas estão sedentas de algo que tanto conhecimento ainda não foi capaz de apaziguar. O conhecimento parece atropelar o essencial intrínseco em nós, e nos desafiar a ser cada vez melhor, ou então, uma máquina mais produtiva e melhor programada para durar mais tempo.
E onde mesmo deve brotar e ser cultivada a paz?
Em nosso interior ela deve brotar e se instalar!
Quando a consciência sair da infância que busca a unidade na tribo; superar a adolescência que conhece a unidade na cidade-estado, e chegar à maturidade que cultiva a unidade como uma só nação planetária, teremos a matéria prima que serve de amálgama e que sustenta esta unidade produzindo a justiça, a abnegação, a moderação, a temperança, a bondade, a resignação, o sacrifício e o amor, para o qual fomos criados e estamos destinados.
A capacidade de amar e coexistir em paz está ligada diretamente ao nosso estado interior. Esta sonhada paz interior está condicionada a tudo o que nos habita, naquilo que estamos conscientes e naquilo que se esconde em nossos porões existenciais. Nossos traumas não resolvidos, nossas marcas escondidas e rejeitadas a ferro e fogo, nossas dores negadas, nossas carências camufladas. Tudo está em nós, nossa guerra e nossa paz.
Se tudo está em nós, fica evidente que o processo de construção da paz passa pelo autoconhecimento e pela disposição de transmutar as sombras em luzes e assim servir-se das cicatrizes como faróis que podem orientar o próprio caminho e o caminho daqueles que juntos com nós buscam a pacificação.

2. O PENSAMENTO SISTÊMICO ENQUANTO CAMINHO PARA A CONSTRUÇÃO DA PAZ
Judiciário, Ministério Público, Defensoria, OAB e demais instituições públicas devem priorizar suas ações para que a PAZ seja sempre o objetivo máximo a ser alcançado.
No campo das relações sociais, pública ou privada, seja de forma coletiva ou individual, também as ações devem ter por objetivo a pacificação. É demais pedir isso? É estranho ter esse objetivo?
A partir do Imperativo Categórico de Kant, talvez possamos sublinhar que a paz deve ser a cultura por excelência nas relações sociais, institucionais e pessoais.
Falando especificamente do judiciário, notamos muitos movimentos de humanização do Direito ganhando espaço e força nos últimos anos, os quais não podem perder o norte que é a CULTURA DA PAZ.
Seja a Justiça Restaurativa, a Mediação, a Aplicação Sistêmica do Direito (Direito Sistêmico) ou qualquer outra abordagem que se propõe a auxiliar na pacificação e transformação do conflito, todas devem estar a serviço de algo maior, que é a pacificação.
Por tal motivo, todo esse ferramental teórico e prático precisa compartilhar seus saberes entre si, para que, de forma inclusiva, se fortaleçam no propósito maior e único.
A violência é um ato complexo e sua compreensão também depende de ações complexas. Para isso a dualidade e separatividade tão comum no Direito tradicional, não pode ter espaço nesses movimentos pacificadores e que se dizem opostos ao litígio.
O pensamento sistêmico, ecológico por excelência, pressupõe que as relações não se dão entre objetos ou pessoas, mas entre conexões. São redes, teias que nos unem e, por tal razão, nos interligam com todos e com tudo. Não há separatividade, mas complexidade.
Como visto, a CULTURA DA PAZ pode ser compreendida a partir da ecologia pessoal (física, mental emocional), ecologia social e ecologia planetária. Destes, pensamos que a mais importante para os que estão envolvidos nos movimentos de pacificação, seja a pessoal, mas sem ignorar as demais.
Contudo, é comum presenciamos profissionais da área do Direito que se colocam a serviço da cultura da paz, porém vivem em completa ausência de paz (pessoal, familiar e social).
Não se espera que sejam perfeitos ou isentos de aflições, porém é muito importante que tomem consciência de que a cultura da paz começa consigo próprio, em suas relações e na família.
Precisamos fazer esse movimento de autoconhecimento, de saber identificar nossas fraquezas e virtudes, compreender que é possível transformar os conflitos que nos chegam diariamente. Com certeza, um profissional consciente de quem realmente é, terá uma importância ainda maior para o movimento.
É comum instituições oferecerem cursos de gestão de escritório/gabinete, como peticionar, fazer sentença, oratória etc. Tudo isso é importante, claro, agrega saberes técnicos, mas de nada adianta se a CULTURA DA PAZ é algo estranho a este profissional.
Afinal, para onde estamos olhando? Para o sucesso profissional, lucro, captação de clientes ou a para a pacificação?
Nem todos estão prontos para esse movimento e para muitos isso não faz sentido. Respeitemos. Porém para aqueles que estão nesse caminho, é preciso compreender que a pacificação começa em cada um de nós.
E nesse sentido a Justiça Restaurativa[4] e a Aplicação Sistêmica do Direito[5] tem se mostrado caminhos hábeis a proporcionar ao profissional e também ao cliente, uma reflexão sobre as causas das demandas e conflitos que chegam ou querem chegar ao judiciário.
São duas possibilidades que não se afastam, pelo contrário, se complementam, pois estão a serviço de um pensar sistêmico e complexo, que não separa. Estão em rede.
E esse é o ponto. O pensamento sistêmico supera o pensamento cartesiano e se quisermos agir sistemicamente, é preciso compreender que tanto a Justiça Restaurativa, como o Direito Sistêmico, a Mediação etc., não são caminhos paralelos. São, antes, caminhos que se cruzam, em uma interdicisplinaridade complexa e com objetivos em comum: CULTUAR A PAZ.

Notas e Referências
[1] EGHRARI. Iradj Roberto. A paz como caminho. Organizadora Dulce Magalhães. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2006. p.  18.
[2] Buarque; Cristóvam. A paz como caminho. Organizadora Dulce Magalhães. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2006. p. 7.
[3] Weil, Pierre. A Arte de de Viver em Paz. São Paulo. Ed. Gente, 1993.
[4] Sobre Justiça Restaurativa Sistêmica ver OLDONI, Everaldo Luiz; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; OLDONI, Fabiano. Justiça restaurativa sistêmica. Joinville: Manuscritos Editora, 2018.
[5] Para compreender o que se denomina de Direito Sistêmico, ver OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; GIRARDI, Maria Fernanda G. Direito Sistêmico: aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao Direito de Família e ao Direito Penal. Joinville: Manuscritos Editora, 2018.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O QUE É O DIREITO SISTÊMICO?

Entrevista concedida ao Jornal Diarinho e veiculada no dia 16/02/2019, no site do Diarinho.
O Direito que não aplica somente leis. As humaniza e visa resolver os conflitos, às vezes subjetivos, entre as partes. Busca entender o contexto e o que está oculto em um caso que acaba virando uma ação judicial. O Direito Sistêmico busca a eficácia através da atuação de um mediador, mesclando outras técnicas, como a psicologia. Para falar sobre essa nova abordagem, a jornalista Franciele Marcon entrevistou o professor e mestre em Ciência Jurídica, Fabiano Oldoni. Ele fala da nova forma de trabalhar o Direito, dos benefícios e dos cuidados de quem se propõe a trabalhar com essa técnica inovadora. Com três livros escritos sobre o tema, ele demonstra paixão pelo assunto e, principalmente, anseio de transformar positivamente a sociedade. Fabiano também fala sobre o atual momento do Brasil e faz críticas ao pacote de mudanças na área penal propostas pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro. Uma entrevista para, também, refletir e debater. 
DIARINHO – Como explicar para os nossos leitores o conceito de Direito Sistêmico?

Fabiano: O Direito sistêmico é uma nova forma de aplicar o Direito. A gente trabalha com a ideia de que é uma forma muito mais humanizada de trabalhar com o Direito. Porque o Direito em si, quando você judicializa uma questão, o judiciário vai resolver aquele processo. Ele vai resolver a situação específica. Mas essa sentença judicial não resolve o conflito, porque o conflito é entre as partes. O Direito Sistêmico tem essa postura de olhar o Direito de uma forma mais humana, mais ampla. Ele trabalha com a ideia de que o problema tem que ser resolvido pelas partes. Você não pode terceirizar o problema. Quando a gente judicializa, o juiz dá uma decisão conforme as leis, conforme as provas. Essa decisão, geralmente, não agrada ninguém. Principalmente no Direito de Família. onde é muito comum você ver uma separação, uma guarda ou alimentos sendo fixados e desagradando a todo mundo. O conflito permanece. O Direito Sistêmico visa você olhar o conflito e não olhar o acordo. Você não olha o processo, você olha o conflito. Porque esse conflito é um efeito de questões que estão por trás, que não aparecem, são as questões ocultas. A postura de você olhar o Direito de uma forma sistêmica, é você ir além dos problemas que são apresentados, além do “A” e do “B” e fazer com que esse “A” e “B”, esses litigantes, consigam realmente perceber qual é o motivador do conflito. Essa é ideia da visão Sistêmica do Direito ou do Direito Sistêmico. Lembrando que isso não é um ramo do Direito, é só uma nova forma de você aplicar.

“Não tem como trabalhar com a violência doméstica somente aplicando lei”
DIARINHO – Essa forma não aumenta a morosidade do judiciário, que analisará todo o contexto antes de um julgamento?

Fabiano: Não, pelo contrário. A gente trabalha em duas frentes: primeiro, você não judicializa. Há várias oficinas, vários juízes que estão trabalhando dessa forma e eles fazem uma audiência conciliatória, ou até mesmo nos escritórios modelos das universidades, fazem audiências conciliatórias e dali sai o acordo. Ou quando está judicializado, eles fazem essas audiências, esses encontros, essas oficinas e a partir dali o acordo é facilitado. Há uma redução no número de sentenças, porque a ideia não é o juiz sentenciar. O juiz devolve o problema para as partes. Ou seja, o problema é de vocês, vocês têm que entrar num consenso. Essas oficinas, essa forma diferente de ver o Direito, de aplicar o Direito, faz com que as partes realmente se voltem. Elas vão olhar onde está o problema. Aí elas conseguem visualizar qual a motivação do problema, isso facilita o acordo. Nós temos, por exemplo, juízes em Floripa, que foi uma das pioneiras, na Vara da UFSC, que sentenciam muito pouco os processos, porque geralmente são feitas oficinas e são feitos os acordos provenientes daquelas oficinas. E os acordos são cumpridos! Porque não são aqueles acordos de Mutirão de Conciliação que tu vai lá: “me dá 10, te dou 8, fechamos em 7”. Não é isso! Os acordos são conscientes. Como são conscientes, as pessoas realmente visualizam o porquê estão brigando, porque estão litigantes e o que é importante para cada uma delas. Elas cumprem aquele acordo. Isso na área da Família! No Direito Penal não tem como, porque não tem como você abrir mão de uma pena em algumas situações. Mas o Direito de Família, Direito Trabalhista, Direito Empresarial tem… Principalmente Direito de Família: guarda, alimentos, separação, divórcio é onde você tem uma aplicação muito mais efetiva dessa nova metodologia de ver o Direito.

DIARINHO O senhor escreveu um livro sobre o assunto no qual defende a necessidade de mudar a forma de analisar e punir. Como seria isso?

Fabiano: Tem o Direito Sistêmico, que é primeiro livro que foi escrito sobre essa temática. Eu, a professora Márcia Sarubbi, a professora Maria Fernanda Gugelmin. Esse livro apresenta de forma didática o Direito Sistêmico. Depois a gente trabalhou com outro livro, que é o livro da Constelação Sistêmica na Execução Penal, que é um livro que foi trabalhado a partir de um projeto num presídio, na Casa de Albergado em Florianópolis. A gente trabalhou com 40 detentos, colheu os dados e apresentou como trabalhar dessa forma, com as Constelações Sistêmicas, ou com o Direito Sistêmico, dentro da execução de pena. Por último, a gente fez um livro sobre a Justiça Restaurativa Sistêmica que é uma outra abordagem, um pouco diferente e que o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] está implementando agora, a partir de 2016, que todos os tribunais têm que implementar a justiça restaurativa, digamos que seja o gênero, e o sistêmico está dentro da justiça restaurativa. Essa nova ideia é você trabalhar para resolver o conflito a partir do diálogo, não a partir de um terceiro que conceda direitos. O diálogo, a escuta, a cooperação, para que o conflito seja solucionado, transformado. Porque a gente não tem como diminuir conflito, não tem como você acabar com o conflito. O conflito faz parte da relação humana. Todo conflito, toda violência é um chamado de ajuda. É um pedido de ajuda. Por trás disso existe uma situação que é oculta. Essa nova abordagem busca, através do diálogo, do ouvir, encontrar qual é a questão que está motivando essa violência.

“Nenhuma pena de prisão tem por função ressocializar”
DIARINHO – Quais países já usam esse método e quais seriam os benefícios?

Fabiano: O Direito Sistêmico, a aplicação da forma sistêmica dentro do Direito, se não me engano, só existe no Brasil. O Brasil foi o pioneiro. A Constelação Sistêmica surge na Alemanha e ela vai para o mundo, mas ela vem inicialmente no Brasil, e de forma muito forte dentro do judiciário. Isso é uma coisa. A justiça restaurativa é outra coisa. A justiça restaurativa tem abordagens lá em 1970 no Canadá, Austrália, nos Estados Unidos, e isso é muito forte. Os países da América do Norte aplicam a justiça restaurativa, ou as práticas restaurativas, seja no judiciário, seja na comunidade. O Brasil é muito novo ainda. Temos duas situações que são diferentes, mas que tem o mesmo propósito: a Justiça Restaurativa e o Direito Sistêmico. Eles se alinham, não são coisas que se excluem, eles se alinham. E eles surgem, mais ou menos, no mesmo período, há uns três anos. Tudo muito novo, tudo sendo construído ainda no Brasil. A gente tem curso de formação pra quem quer ser formador ou facilitador de justiça restaurativa. Porque o judiciário não consegue encontrar pessoas que sejam capacitadas para facilitar. Aquele que vai lá não é um mediador comum, um conciliador comum. O facilitador precisa ter um outro feeling, não é simplesmente se sentar e ver o acordo para que lado vai, não é isso. É muito mais complexo do. Nós não temos o material humano para isso, então existe toda uma necessidade de você formar essas pessoas ainda. [Nas universidades ainda não se debate o Direito Sistêmico?] Não, não faz parte da carga horária. A gente conseguiu incluir na Univali uma EAD com Métodos Alternativos de Transformação de Conflito, dentro dela a gente trabalha a justiça restaurativa e a abordagem sistêmica. Aos poucos isso está vindo. A gente está com uma pós-graduação em Direito Sistêmico, abre agora em março, em Floripa, que é a única pós do sul do país. A gente vê a necessidade que as pessoas têm de buscar esse conhecimento, porque não há onde estudar. Nós temos até cursos avulsos, mas não tem uma formação específica. A gente criou essa pós justamente para que a pessoa saia dali com uma formação em pós-graduação nessa temática que é muito mais humanizada.

DIARINHO – O senhor acredita que seriam os próprios operadores do Direito que deveriam buscar auxílio na psicologia, economia, política e moral ao julgar um conflito?

Fabiano: O conciliador, ou aquele que se propõe a ser um mediador do conflito do outro, primeiro tem que estar inteiro. Ele tem que conhecer a si, as suas mazelas, as suas dificuldades. Porque o que a gente encontra de conciliador, de mediador por aí que tem mais problemas do que as partes, é complicado… Ele não vai ajudar em nada. Um conciliador, um mediador verdadeiro, aquele que se propõe a ser realmente, ele tem que primeiro mediar os conflitos dele. Tem que fazer uma busca dos seus problemas, e aí ele vai ter que trabalhar com psicologia, ele vai ter que fazer autoconhecimento, ele vai ter que fazer uma formação pessoal e humanística. Depois ele pode ir até o mundo do outro e verificar como pode colaborar. Porque o mediador, nessas novas abordagens, não diz o que é certo ou errado. Ele não dá o Direito pra ninguém, ele simplesmente faz com que as partes busquem o que é melhor para elas. Aí entra uma questão muito difícil para nós, enquanto seres humanos, que é o não julgar. Porque a gente julga o todo momento, e o mediador também julga, mas ele tem que saber que não pode julgar, então é muito difícil. O Direito em si não anda sozinho, não tem como você trabalhar no Direito só com o Direito. Direito em si é a lei. A lei está ali, a gente precisa humanizar isso.

DIARINHO – Como é bastante novo, o direito sistêmico gera desconfiança. Uma frente acredita que, em geral, a invasão de técnicas e outras ciências ao Direito não é boa, porque seria uma “fuga”. Também há uma preocupação com relação a pessoas sem habilitação manejando técnicas de ciências próprias e supostamente danificando a psique de pessoas. Como o senhor responde a essas críticas?

Fabiano: Primeiro, a abordagem de que é uma técnica de fora que vem para o Direito, é uma crítica que quem faz geralmente é porque ignora como funciona. Essa abordagem é uma abordagem que, primeiro, tem que ser feita por um profissional habilitado. Não é qualquer profissional. A gente tem visto profissionais que não têm habilitação fazendo, e isso realmente gera danos. Porque você mexe com a psicologia, com uma relação familiar e isso é muito perigoso. Quem for se prontificar a fazer tem que ter formação, tem que ter conhecimento. Essa crítica é verdadeira, é acertada. Agora, que não pode haver uma intromissão de técnicas dentro do direito, isso é falso, isso é ignorante. O direito porque si só não sobrevive. Eu sempre falo quando a gente vai trabalhar dentro da sala de aula, o direito se apropriou da fala da violência: quem fala da violência é direito. O direito não consegue compreender a violência. Quem consegue compreender a violência é a psicologia, a criminologia, são outras áreas. Não tem como trabalhar com a violência doméstica somente aplicando a lei. Porque a violência, novamente, é um chamado de ajuda. Por trás disso há toda uma relação que foge do direito, então o direito sozinho não consegue alcançar isso. A gente precisa dessas outras áreas, dessas outras colaborações para que o conflito seja realmente transformado em algo positivo. [Mas aí não entra o fato da Lei de Execução Penal (LEP) não ser implantada em seu objetivo? Hoje os nossos presídios são apenas depósitos de pessoas, o sistema não ressocializa…] Não, aí a gente parte de uma premissa falsa. Mesmo que a gente implementasse tudo que está dentro da LEP, e que não é implementada. É uma lei muito boa, muito avançada, mas ela não é implementada. Mas digamos que ela fosse implementada, eu vou ressocializar o preso? Não! Nenhuma pena de prisão tem por função ressocializar. “Ah, professor, mas isso tá lá na lei.” A lei diz isso, mas na prática não acontece. Você não consegue trazer à sociedade nenhuma pessoa por meio de punição. A prisão é simplesmente punição. “Ah, mas vamos dar emprego, vamos dar escola”. Ele vai, ele entra, ele trabalha, ele estuda, quando ele volta para sociedade, ele volta para o seu núcleo e volta a delinquir. É um problema que está lá fora e não foi olhado. A questão do sistêmico é justamente isso. Quando a gente fez o trabalho lá em Floripa, trabalhou não com a questão do crime que ele praticou, mas onde está o motivador disso. O motivador está sempre na família. Ele sai daqui e volta para a família. O que tu vais fazer? Vou voltar a fazer. Ou vou agredir, ou vou assediar, eu vou voltar a traficar. Porque tem um contexto familiar que ele tem que resolver. A prisão em si não tem função de ressocializar. Mas se fosse a LEP aplicada da forma como ela é prevista na lei, nós teríamos pelo menos ter a garantia de que ele entraria na prisão e não sairia pior. Isso já é uma grande coisa. Hoje entra e sai pior. Não tem nenhuma perspectiva de entrar e sair melhor. Nenhuma! Mesmo você aplicando a LEP. Porque a ão aborda a questão principal que é a questão do conflito que está lá fora, que continua lá fora ainda.

DIARINHO – Há um pacote de mudanças na área de segurança pública que foi anunciado pelo ministro Sérgio Moro. O senhor acredita que vem para melhorar a segurança?

Fabiano: Você não contém violência por meio de legislação, isso é outra premissa falsa. Isso não existe. Não existe nenhum estudo no mundo que comprove que você punindo mais e aumentando a pena, aquele tipo de crime vai diminuir. Não existe isso. Me admira o Moro acreditar que isso seja possível, me admira. A população acreditar que isso é possível, beleza… Porque isso é senso comum, pessoas que não têm o conhecimento técnico. Agora, ele tem o conhecimento técnico. Se você pegar os maiores juristas da área criminal, de segurança pública, 90% vão dizer assim: “isso não vai alcançar o objetivo que se propõe”, que é diminuir violência. Qual é o problema disso? O problema é que ele tende a aumentar a violência [E pra um determinado grupo…] Exato! Por mais que seja feito para punir crimes de corrupção, de colarinho branco, acaba sempre refletindo no crime da maioria, que é o crime de sangue, crime de tráfico, que é praticado por aqueles que tem menos… Porque nós vamos ter um inchamento das penitenciárias, vamos ter mais gente presa, por mais tempo e isso vai inchar. E isso vai dar um problema seríssimo. Precisaria fazer um estudo a médio e longo prazo pra você ver pra quanto nós vamos subir a população prisional e se nós comportamos. E se nós não comportarmos isso, hoje já está inchado, tu imaginas daqui a cinco anos. Essa é uma lei que pode dar um efeito negativo para daqui a cinco, seis anos. E aí lá na frente a gente vai “mas porque estamos vivendo isso?” e aí tem que fazer o link. Porque foi feito uma lei lá atrás. E que não diminuiu violência, pelo contrário, aumentou. Porque se você aumenta encarceramento, automaticamente você aumenta violência. Isso é comprovado cientificamente: a violência, ela muito mais nasce a partir do cárcere do que fora do cárcere. [Ao mesmo tempo quanto mais arma no mercado, mais aumenta a violência..] A temática é a mesma. Nós não temos cultura de andar armado, nós não temos preparo. Os próprios policiais avisam: “olha, para mim, policial, andar armado, às vezes, eu já me sinto incapaz de estar com essa arma porque eu posso fazer uma besteira…”. Imagina alguém que não tem o preparo suficiente. Também é outra perspectiva de que vai gerar segurança, mas não vai. Mas a gente precisa, talvez, passar por isso pra que lá na frente olha e diga: “olha, foi avisado”. Porque nós não teremos uma estatística positiva. Talvez nós teremos um aumento de acidentes domésticos com armas, com crianças, violência doméstica contra as mulheres, que são hoje vítimas de armas de fogo. E aquela ideia de que o “bandido” não vai entrar numa casa porque tem arma? Ele não respeita nem o policial armado, ele vai respeitar o cidadão que tem uma arma em casa? É outra premissa falsa… É absolutamente falso isso. [A gente tem experiências que vem de outros países, mostrando que armar a população não está dando certo..] Nós tivemos um governo que trabalhou com a questão social por um longo tempo, mas com seus problemas da questão de corrupção. Mas tinha o lado social que foi muito interessante e bacana. E parece que isso não é do agrado da maioria. As pessoas querem mudar. Mas isso é muito mais pelo que nos é passado pela mídia. É plantada uma situação de medo, de insegurança e isso é feito a partir de uma lógica de mercado. Você planta para depois você colher. E qual a colheita disso? Você trazer novamente as indústrias armamentistas. Por trás disso tem uma questão mercadológica. Então, foi avisado, foi dito, tem estudos, tem comparativos, a população não quer nem saber. Talvez a gente precise vivenciar isso, infelizmente, com o aumento de violência e com morte de muitos inocentes, para eles se conscientizarem que realmente não era isso. Nós temos uma população que parece que só acredita naquilo que vê. São muitas discussões em mesa de bar, então quando você diz: “ah, mas eu estudo o assunto há tanto tempo” e isso não tem mais sentido. Não tem sentido as pessoas que estudam. Tem sentido aquilo que eu acho que é o certo. Nesse caso me parece que seja necessário essas pessoas sentirem o impacto nas suas vidas, para que elas comecem a retroagir.

DIARINHO – O Tribunal do Júri, ao julgar crimes contra a vida, é formado por pessoas da comunidade. O senhor acredita que esse método é o mais eficaz pra fazer justiça?

Fabiano: O método do Tribunal de Júri é um método que, diferentemente, das decisões proferidas por um juiz, são decisões que não são baseadas em provas, muitas vezes. São baseadas no convencimento. Tanto que eu voto sim ou não e eu não preciso dizer porque eu voto sim ou não. Qual é o meu convencimento? Pode ser que eu tenha gostado do discurso do promotor, pode ser que eu tenha gostado da postura do advogado, pode ser que eu não tenha batido com a lata do acusador, pode ser que o acusado é uma pessoa que não me passou confiança. São questões subjetivas. Talvez alguns dos jurados até consigam fazer uma avaliação de prova, mas basicamente não é, é um julgamento de convencimento, muito subjetivo.

DIARINHO – O senhor fala nas redes sociais sobre o que seria um retrocesso social e humanitário da escolha do presidente Jair Bolsonaro. Pode explicar essa afirmação?

Fabiano: Ele representa uma classe política e ideológica que a gente visualiza como muito atrasada. Tudo aquilo que foi conquistado com relação a questões sociais, humanitárias, educacionais, ele sinaliza, semanalmente, que irá regredir. Não porque ele queira piorar, mas porque a posição que eles adotam é uma posição de regresso, uma posição muito conservadora. Uma posição que trabalha com a sociedade de uma forma muito dualista, entre as pessoas boas e as pessoas ruins. E a sociedade é pluralista, não tem como você separar o bom e o ruim. Me entristece de ver, de ter que ir até o judiciário e, muitas vezes, vendo o judiciário convalidar com isso. A questão da fiscalização de professores em sala de aula, são discussões absolutamente vazias. Escola sem Partido, absolutamente vazia. Nós temos coisas muito mais sérias para se preocupar. E a questão de gênero está sempre na boca de uma ministra, religião entrando muito dentro do Estado. Então são todos retrocessos que se a gente voltar 30, 40, 50 anos atrás, a gente parece que não evoluiu. Vejo um governo absolutamente perdido, um governo inexperiente, que entra no comando, não sabe o que fazer e quer aplicar as medidas de campanhas. Quando começa a implementar, recebe uma chuva de críticas, retroage, não sabe pra onde ir e com isso ele vai balizando seu governo com base naquilo que a população vai aceitando. Mas por trás disso, há vários outros interesses mercadológicos, de mercado, financeiros. E esses interesses, obviamente, são contra meio ambiente, direitos sociais e assim por diante. Então se dá para dividir esse governo em duas partes, é uma parte do social, do humano, do meio ambiente de um lado e uma parte do capital do outro. É muito claro isso, está muito visível. Eles não têm vergonha de esconder.