sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

A VIDA NÃO VIVIDA DE MEUS PAIS


Carl Jung observou em seus estudos que o maior fardo que a criança precisa levar é a "vida não vivida dos pais", ou seja "onde quer que o pai tenha ficado preso, a criança ficará semelhantemente presa e passará a vida buscando livrar-se de tal aprisionamento, elaborando um plano de tratamento inconsciente cujo propósito é suavizar a dor do fardo psíquico desse passado estanque" (James Hollis). 

Esses padrões seguidos pelos filhos acabam, muitas vezes, seja pela tentativa de ruptura ou fidelidade, motivando ações enquadradas como ilícitas e criminosas.

De forma alguma se está retirando a responsabilidade do ato praticado pelo sujeito.

O que se levanta é: O Direito Penal tradicional, com sua leitura cartesiana do mundo, tem condições de colaborar para que esse cidadão consiga perceber o que tem motivado-o a praticar tais atos?

Essa abordagem só é possível a partir de uma visão sistêmica das relações e dos conflitos. 

O Direito Penal Sistêmico, a Justiça Restaurativa tradicional e a Justiça Restaurativa Sistêmica são caminhos que respeitam a história de todos, vítima, infrator e comunidade.

QUAL A CULPA QUE ME GUIA?

Indagação que parece despretensiosa, se analisada com atenção pode indicar muitas causas do sofrimento humano e da violência.

James Hollis apresenta 3 modalidades da culpa. 

1) como forma de responsabilização pelas nossas escolhas
2) culpa contextual
3) como forma de administração da ansiedade

A culpa 1 é o reconhecimento do dano que fizemos aos outros. A culpa 2 é nossa conivência com a exploração e com valores contrários ao que professamos. A culpa 3 manifesta-se somaticamente como forma de evitar que voltemos aos momentos de ameaça e abandono da infância.

Essa é a que mais merece atenção para o tema.

Hollis, a partir da teoria de Jung, informa que trazemos 2 complexos formados na infância: medo da ameaça e do abandono.

Toda criança, de regra, criou--se vivenciando ameaças (veladas ou não) dos pais e com receio do abandono p(m)aterno.

É mais um processo de ansiedade e angústia, vestida de medo.

Essa "culpa" pode ser a geradora de muitos casos de violência, justamente para evitar o assombro da ameaça e do abandono que nos acompanha, enquanto complexo (inconsciente).

Se tem violência, tem a necessidade do Direito se apresentar. Mas como esse direito consegue perceber essas questões?

Não consegue. A percepção é possível pela visão Sistêmica e Restaurativa da violência, olhares que não são alcançados pelo direito tradicional.

O convite é que o estudo do Direito transpasse a dogmática e visite o pensamento Sistêmico, naturalmente transdisciplinar.

VOCÊ SABE O QUE É A JUSTIÇA RECRIATIVA?

O método recriativo perpassa pelo restaurativo, mas não para nele, se adianta. Explica Antônio Beristain que o método restaurativo “procura solucionar o problema, restaurar o dano resultante do delito”, enquanto a recriadora “não admite uma culpabilidade moral, unicamente admite a culpabilidade jurídica” e empenha-se “a favor da restauração, mas não a considera suficiente, porque esta olha o passado mais que o futuro.

O modelo recriador busca a “compreensão” do comportamento do infrator, das vítimas e da sociedade, e a partir dela, como resposta, a criação que preencha o dano ocasionado pelo desvio e, mais que isso, que possibilite e fomente a “evolução reavaliadora para o amanhã”. A Justiça Recriadora, na proposta de Beristain, deseja recriar a convivência harmoniosa, superando “a repetição circular da cultura helênica”, evitando-se a repetição até o acerto, mas seguindo e recriando um novo viver. 

Esse modelo deverá servir-se das diversas teorias construtivistas e na moderna antropologia que “constata o poder inovador da pessoa e da construção social da realidade”, colaborando para que a pessoa alcance “um jeito humanamente produtivo, não no sentido mercantil fabricador de objetos, senão no pessoal, recriador de sujeitos, começando por si mesmo”.

O “PENSAMENTO MÁGICO” E O DIREITO PENAL: POR UM DIREITO PENAL SISTÊMICO E RESTAURATIVO

Somos o terceiro país que mais encarcera no mundo. Vivemos em uma sociedade que transita por uma aparente violência cotidiana, dentro e fora do sistema prisional, que desmotiva um observador desatento, quanto ao futuro das próximas gerações.
Essa realidade não é apenas nacional. Está presente na maioria dos países.
A resposta para essa “onda de criminalidade” foi e continua sendo o Direito Penal. É por meio da tipificação de condutas, do aumento das penas e do encarceramento provisório[1] que se busca “combater” a violência/criminalidade.
O mais grave não é o uso equivocado do Direito Penal para essa finalidade, mas acreditar que ele serve para isso. É um pensamento mágico sobre a eficácia do Direito Penal com finalidade preventiva.
O pensamento mágico “é uma característica das crianças, das chamadas culturas primitivas e também nossa, quando regredimos e estamos vulneráveis”. Todos nós “inconscientemente, criamos um comportamento ritualizado para afastar as forças negras e nebulosas. Quando nossos rituais não funcionam, nossa angústia aumenta”[2]
Nos parece muito esclarecedora a passagem acima. Nossa vulnerabilidade frente à violência, justamente por não a compreender (causas e motivos), faz com que acreditamos que um terceiro (Estado), por meio de um conjunto de leis irá nos manter em segurança. Esse sistema criado é fundamentado em uma ideia de ameaça, em que se acredita que a punição prevista em um tipo penal possa desmotivar alguém na prática do delito.
Agimos como “crianças”, acreditando em um “salvador” um “super-herói” que virá nos salvar do agressor, que sempre é o outro, nunca eu. Esta crença nos faz até mesmo aceitarmos que nossos direitos e garantias sejam diminuídos, desrespeitados, em nome de uma suposta proteção, que nunca vem.
Há toda uma ritualística discursiva estabelecida pelos catedráticos e estudiosos da dogmática penal (função da pena, ressocialização, prevenção etc.). Explica Hollis que “esses rituais são talismãs mágicos contra a insuportável ideia de que estamos em um universo estranho e nem sempre amigável”.[3]
Insistimos em trilhar esse caminho absolutamente equivocado. É preciso compreender e aceitar que o Direito Penal sempre chega atrasado, após a prática do fato ilícito e parar de acreditar que por meio da criminalização e simples punição os delitos irão diminuir. Temos mais de 1.600 tipos penais no Brasil e nem por isso a sensação de segurança ou a prática de crimes diminuiu.
Essa estrutura do Direito Penal tradicional busca apenas retribuir/punir pelo ilícito praticado. Não acreditem na ressocialização via encarceramento, isso é “pensamento mágico”. Quem minimamente estuda o sistema sabe que o encarceramento gera ainda mais violência.
Mas tudo isso já foi dito centenas de vezes nos livros de criminologia e em estudos sérios sobre o simbolismo do Direito Penal.
Porém o que pouco se fala é da ingenuidade dos juristas/políticos que querem “enfrentar” o ilícito por meio do punitivismo, como se o discurso sobre violência fosse um monopólio do Direito Penal.
Ingênuos. O Direito pouco sabe sobre a violência. Especificamente o Direito Penal, por muitos visto como um “talismã”, mais serve para criar violência. Quem quer compreender a violência ou o desvio precisa transitar pela criminologia, sociologia, psicologia, filosofia e tantos outros saberes que buscam compreender o comportamento humano, seja na sua individualidade ou coletivamente.
Para tentar entender a violência/desvio, precisamos observar o comportamento humano e para isso o Direito é um “analfabeto funcional”.
A partir desta premissa, percebe-se facilmente que o punitivismo não irá mudar o cenário atual, pois o que é feito com o preso senão separá-lo do convívio social sem possibilitar qualquer oportunidade de entender o porquê da prática do desvio?
Para James Hollis, “como e por que nosso sistema penal é tão ineficaz, pode ficar parcialmente claro aqui. Até mesmo as palavras penitenciária reformatório se baseiam na ideia de que se uma pessoa for exilada do apoio psicológico do aspecto coletivo, que ele seria ‘penitente’ e que a ‘reforma’ moral ocorreria. Mas o sistema que temos é na verdade punitivo e raramente aborda a questão de como uma pessoa legitimamente condenada pode ser ajudada a se tornar consciente do mal que praticou e assumir a responsabilidade pelos seus atos, em vez de culpar a sociedade ou simplesmente a má sorte.”[4]
E esse é o norte que um sistema que busque prevenir o desvio deve seguir. Como fazer com que o sujeito tenha consciência do ato praticado e assuma a responsabilidade a partir da compreensão das causas que o motivaram a agir daquela forma?
James sugere a teoria dos 3 erres: Reconhecimento, Recompensa e Remissão (perdão).
Reconhecimento diz respeito à conscientização do sujeito sobre o ato praticado e do dano causado a ele próprio (EU) ou uma outra pessoa.
Recompensa, que só faz sentido se houve um reconhecimento e arrependimento genuíno, pode ser real, quando seja possível, ou apenas simbólico, “não sendo menos real por causa disso, porém claramente um ato de retorno psicológico por aquilo que foi tomado”.[5]
E quando o reconhecimento é genuíno e a recompensa efetiva ou simbólica ocorreu, aí é possível vivenciar a Remissão, que se baseia no “arrependimento” ou “na expansão da consciência”, que obriga a pessoa a reconhecer a “própria sombra, mas ao fazer isso, ao se responsabilizar por ela, a pessoa começa a agir no mundo de uma maneira diferente”[6]
Esse saudável reconhecimento da culpa/responsabilidade foi apresentado por Jung, e não significa uma fuga ou negação, mas um processo de individuação, que tem por tarefa a totalidade do indivíduo e não a bondade, a pureza ou a felicidade. É o enfrentamento ao EGO, num diálogo entre ele e o EU verdadeiro, que Jung chama de SELF.
Em resumo, “parte do legítimo desenvolvimento do indivíduo é o reconhecimento adequado da culpa, o que significa a aceitação da responsabilidade pelas consequências da própria escolha, por mais inconsciente que ela tenha sido na ocasião”[7]
Como o Direito pode contribuir para isso?
Sabemos que muitos atos geradores de violência escondem uma traição, seja nas relações amorosas ou negociais. Estes atos considerados como crime, autorizam, muitas vezes, uma condenação e o encarceramento do sujeito. O ato a ser julgado é o efeito de uma causa que, muitas vezes, nenhum dos envolvidos tem consciência de que foi o motor propulsor do desvio.
Apenas como exemplo singelo, trazemos esta hipótese da traição que motiva um delito e autoriza a condenação de alguém, que perdendo sua liberdade passa a conviver em um sistema prisional, sem qualquer possibilidade de tirar algum proveito desta situação, eis que o modelo tradicional não está preparado para dar algo diferente da retribuição e vingança.
Mas seria possível este sujeito aprender com o ato praticado? Vejamos o que escreveu Carotenuto:
A experiência da traição, traduzida em termos psicológicos, proporciona a oportunidade de vivenciarmos um dos processos mais fundamentais da vida psíquica, a integração da ambivalência, incluindo os sentimentos amor-ódio existentes em todos os relacionamentos. É preciso enfatizar novamente que essa experiência não envolve apenas aquele que geralmente leva a culpa, mas também o traído, que inconscientemente desencadeou os eventos que provocaram a traição.[8]
Pelo modelo tradicional de justiça e pelas estruturas do sistema prisional, essa expectativa dificilmente se concretizaria. Contudo há uma nova abordagem do Direito, a partir de uma percepção sistêmica e restaurativa, onde o sujeito, suas relações e não a conduta é o foco principal.
Essa visão sistêmica e restaurativa do Direito Penal pode ser expressada a partir da Justiça Restaurativa e do que se denomina de Direito Penal Sistêmico.[9]
Essas abordagens, que visam a CULTURA DA PAZ, investigam as causas do conflito, na perspectiva de que a violência é um ato social normal e que pode ser transformado. O conflito é visto como um efeito, um sintoma que está chamando a atenção dos envolvidos sobre alguma questão que precisa ser vista e compreendida.
A imersão ao autoconhecimento é uma necessidade urgente do indivíduo, que precisa saber dialogar com o EGO com o SELF, na busca da individuação.
Saber que as motivações da violência são, quase sempre, nossas sombras projetadas inconscientemente no outro é primordial. O que não suportamos ou negamos em nós, projetamos no outro, sendo, muitas vezes, a propulsão do conflito.
Superar o pensamento mágico do Direito Penal é um convite a um discurso adulto e não infantilizado.
E para isso apresentamos alguns dados obtidos ao longo de dois anos e meio de implementação de Projetos junto ao Sistema Prisional Catarinense.
No ano de 2017, iniciamos um projeto pioneiro de aplicação das Constelações Sistêmicas na Casa do Albergado Irmã Maria Uliano, cujo público alvo era composto por homens, com vício em álcool e que tinham praticado ato de violência.
O projeto partiu das seguintes hipóteses de pesquisa:
1) O vício é um dos fatores que levam a prática dos delitos;  
2) O vício era motivado pela ausência paterna, assim ao tratar a origem sistêmica do vício, que conduzia à prática do delito, poderíamos incidir na redução da reincidência.
Para que pudéssemos atingir nosso objetivo, foi desenvolvido um modelo de atendimento, que pode ser denominado de restaurativo sistêmico, pois integra preceitos oriundos da Justiça Restaurativa e também da prática sistêmica.
De forma objetiva podemos dizer que o atendimento restaurativo sistêmico inicia com a Acolhida do Preso, sempre de forma empática e respeitando as Ordens da Ajuda de Bert Hellinger; passa-se, então, à segunda etapa na qual é realizada a Escuta Ativa Restaurativa Sistêmica, guiada pelas Perguntas Restaurativas Sistêmicas, conduzindo o preso à tomada de consciência sobre seus vínculos e padrões intergeracionais, assim como a dinâmica simbiótica entre vítima-agressor; na terceira etapa, utilizando os recursos sistêmicos, mas sem perder o foco na abordagem restaurativa, são realizados movimentos de liberação dos laços e emaranhamentos do preso, sempre que possível; por fim, o atendimento encerra com uma espécie de check-list daquilo que foi trabalhado e comprometimento do preso em fazer diferente, sempre após a tomada de consciência e responsabilização do mesmo.
Trata-se de um processo complexo para o qual é necessário estar capacitado na abordagem restaurativa-sistêmica, sendo que o passo a passo acima é apresentado apenas para ilustrar o nosso método de atendimento.
Alguns dados importantes sobre o projeto, que sentimos a necessidade em compartilhar:
a) Número de atendimentos individuais realizados: 73 atendimentos
b) Sexo dos atendidos: masculino
c) Faixa etária dos atendidos: 23 - 65 anos
d) Substâncias que consumiam:
e) Número médio de atendimentos realizados ao mesmo indivíduo: 1,5 %
f) Atendimentos realizados com egressos e suas famílias: 2 Círculos Restaurativos Sistêmicos (Círculo da Reintegração) com Egressos no ano de 2019.
g) Nos círculos foram identificados os seguintes padrões:
vinculação com o sistema carcerário, compreendido como um lugar seguro e de acolhida; conflitos e desequilíbrio na relação do casal, pois em decorrência do tempo encarcerado, da ausência do seio familiar, passou a não se sentir como tendo um lugar na relação de casal, além de ter deixado de ser o provedor da família, lugar esse assumido pela esposa; dificuldade de exercer sua função de pai, pois em decorrência da ausência e do contexto de prisão, deixou de ser respeitado pela companheira, que pratica alienação parental, desqualificando o companheiro.
h) Reincidência: até o presente momento nenhum dos presos que se submeteram ao Atendimento Restaurativo sistêmico voltaram a ser presos, o que nos daria um percentual de 100% de não reincidência, todavia como não é possível monitorar 100% dos atendimentos, são dados que ainda precisam mais tempo e estudo por parte da equipe;
i) principais desordens sistêmicas encontradas:

j) principais benefícios relatados pelos presos:

Esses são alguns dados apresentados de forma sucinta sobre o projeto Constelações Sistêmicas na Casa do Albergado Irmã Maria Uliano.
Os atendimentos foram feitos pelos profissionais e professores Márcia, Fabiano e Everaldo e também por alguns de nossos alunos, que já estão utilizando na prática todo o conhecimento adquirido nos cursos de capacitação sobre Justiça Restaurativa Sistêmica.
Indicamos para leitura e aprofundamento no tema as obras JUSTIÇA RESTAURATIVA SISTÊMICA[10], DIREITO SISTÊMICO[11] e CONSTELAÇÃO SISTÊMICA NA EXECUÇÃO PENAL[12], que abordam de forma sistêmica e restaurativa as relações sociais e conflituosas, oportunizando caminhos diferentes e que certamente são mais eficientes na prevenção de práticas delitivas do que o tradicional Direito Penal.

Notas e Referências
[1] No Brasil com a antecipação da execução da pena mesmo antes do trânsito em julgado.
[2] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 150.
[3] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 150.
[4] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 37.
[5] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 34.
[6] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 35.
[7] HOLLIS, James. Os pantanais da alma: nova vida em lugares sombrios. São Paulo: Paulus. 1998, p. 31.
[8] CAROTENUTO, Aldo. Eros e Patos: amor e sofrimento. São Paulo: Paulus. 1994. p. 81.
[9] Ver sobre o tema em OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Direito penal sistêmico: a aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao direito penal. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/direito-penal-sistemico-a-aplicacao-das-leis-sistemicas-de-bert-hellinger-ao-direito-penal-1508161307. Acessado em 09 de outubro de 2019.
[10] OLDONI, Fabiano; OLDONI, Everaldo Luiz; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Manuscritos Editora: Joinville, 2018.
[11] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi; GIRARDI, Maria Fernanda G. 2 ed. Manuscritos Editora: Joinville, 2019.
[12] OLDONI, Fabiano; LIPPMANN, Márcia Sarubbi. Manuscritos Editora: Joinville, 2018.

NISE, WARAT E O AMOR COMO CAMINHO PARA A RESTAURAÇÃO

Nise, o coração da loucura[1] é um filme brasileiro lançado em abril de 2016, baseado na história da Médica Psiquiatra Nise da Silveira, que nos anos 1950 posicionou-se contra os tratamentos convencionais de esquizofrenia aplicados na época.
Nise[2] foi uma das percursoras do movimento antimanicomial no Brasil e ao assumir o setor de terapia ocupacional do Hospital Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, iniciou uma nova forma de lidar com os pacientes, substituindo os procedimentos usados pelos demais médicos (lobotomia, eletrochoque, punição, isolamento, coisificação do sujeito), pelo amor e pela arte.
Ela ousou olhar os pacientes como seres humanos, os quais ao sentirem que assim eram tratados, permitiram-se também ousar na relação consigo e com os demais. Com técnicas simples como o contato com a natureza e a arte, muitos afloraram potencialidades até então desconhecidas aos olhos externos. Passaram a mostrar ao mundo o que viam em seus íntimos.
A história de Nise à frente daquele espaço terapêutico, mostra que quando o ser humano tem suas limitações e diferenças respeitados, seu espaço preservado, e liberdade para expressar o que pensa, os resultados são muito positivos.
Esse método afasta-se por completo do utilizado pelo punitivismo, que aprisiona, despersonifica, castra e estigmatiza, agressividade essa inerente ao sistema penal, que por não compreender as necessidades de cada interno, coloca todos numa mesma categoria de "marginais”, e às margens são relegados.
O que Nise fez com seus pacientes foi lhes dar amor e cuidado, respeito e espaço, voz e oportunidade de se sentirem e de se expressarem, método que se assemelha com o proposto por Warat num livro que escreveu para ajudar as pessoas a “aprender a ser mediadores comunitárias”. O trabalho aborda a mediação enquanto ética da alteridade que se caracteriza no “respeito absoluto pelo espaço do outro”, sendo “radicalmente não invasora, não dominadora, não aceitando dominação sequer nos mínimos gestos”.[3]
Sua proposta é baseada no reencontro amoroso por meio da mediação, que é a realização com o outro dos próprios sentimentos, é viver em harmonia com a sua interioridade e com os outros, é ter o direito de dizer o que se passa, numa busca do ponto de equilíbrio consigo e com os outros.[4]
Warat aborda o que chama de “mediação do excluído-esquecido-oprimido”, método com as características do diálogo, produzido num espaço que facilita “contágios culturais transformadores”, através da arte, justamente o recurso utilizado por Nise; confiança, não para negociar um acordo, mas para um pacto de cultura; criatividade e compaixão (sentir-se desde o outro).[5]
Para Warat, a “linguagem da ciência” não é capaz de compreender os mistérios da vida de cada um e, por isso, é inadequada para “trabalhar os conflitos nos processos de mediação”. Essa compreensão só acontece por meio do sentimento e do amor. Esses são os instrumentos capazes de alcançar as raízes dos conflitos. Altera-se, então, a linguagem da ciência pela “linguagem poética” dos afetos”, essa a sua proposta.[6]
É preciso pensar a mediação como “fórmula de humanização das relações humanas” e de “construção de uma justiça entendida como preocupação em torno da qualidade de vida”, afastando-se da ideia de “castigar supostos desvios valorativos, morais, desvios de sentimentos ou ações, considerados como tais por uma forma de civilização, que faz da ordem uma neurose”.[7]
A mediação em Warat é um exemplo de como agir preventivamente ao desvio, numa concepção comunitária de aproximação e conhecimento de si e do outro que consigo se relaciona. Afastar-se da razão e aproximar-se do sentimento de pacificação. Mediar não porque é o certo (razão), mas porque desejo que assim seja feito, por ser essa uma pulsão íntima que aflora nos espaços de comunicação e autoconhecimento.
Tarefa das mais difíceis, mas possível e genuinamente restauradora, como foi demonstrado por Nise, que transformou um “alojamento de doentes mentais” em um espaço terapêutico de criação e transformação.
Com Nise e Warat fica evidente que o amor é necessário para a mediação. Contudo, onde há poder, não há amor (Jung), o que autoriza a constatação de que sendo o sistema penal uma estrutura de poder, não há como gerenciar um reencontro amoroso na mediação exclusivamente judicilializada.
A percepção sistêmica da violência é um caminho que busca a cultura da paz e, por meio de instrumentos como a Justiça Restaurativa, o Direito Sistêmico e a Justiça Restaurativa Sistêmica, podemos com mais facilidade alcançá-la.

Notas e Referências
[1] Direção de Roberto Berliner.
[2] Em épocas de eletrochoques, Nise da Silveira enfrentou os procedimentos estabelecidos e apostou na arte e na interação como métodos de terapia psiquiátrica. Única mulher entre os 157 homens da turma de Faculdade de Medicina da Bahia a formar-se em 1926, foi presa dez anos depois pela posse de livros marxistas. Na prisão conheceu Olga Benário, Graciliano Ramos e outros participantes do movimento comunista, que se tornaram amigos seus.
Iniciou os trabalhos de terapia ocupacional no Brasil e fundou, em 1952, o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, documentando os trabalhos de seus pacientes nas oficinas de modelagem e pintura, valorizando-os como forma de compreender profundamente o universo interior do esquizofrênico. (MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL. Disponível em http://movimentoantimanicomial.blogspot.com.br/2010/02/nise-da-silveira.html. Acessado em 20 de março de 2017).
[3] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 54 e 193.
[4] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 28.
[5] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 200-201.
[6] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 28-29. Ainda o autor: “A linguagem que estou chamando de coração transmite aquilo que não pode ser transmitido pela linguagem fática (entendida intelectualmente), deseja dizer aquilo que não pode ser dito pela linguagem da comunicação ordinária” (p. 29).
[7] WARAT, Luis Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador. Volumo III, Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 113.