As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes,
os criminosos, os boêmios, os ciganos, os vagabundos,
os gigolôs, os malandros, os homossexuais e os mendigos
sãos os desviantes sociais, percebidos como incapazes
de usar as oportunidades para o progresso.
Falta-lhes moralidade.
(Ervin Goffman)
Estigma,
para os gregos, era um termo empregado para designar sinais corporais com os
quais se procurava evidenciar algo de extraordinário ou mau sobre a moral
daquele que os apresentava.
Os
sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um
escravo, criminoso, alguém marcado para sempre e que deveria ser evitado, não
tocado. O estigma era associado a algo de ruim.
Na
era cristã, o estigma apresentou-se sobre duas novas facetas: como sinais
corporais de graça divina (os estigmas de Cristo crucificado, por exemplo) e
como distúrbio físico.
Na
atualidade, o termo é mais usado na acepção original grega, representando algo
de mau, uma desgraça (do italiano disgraziato: infeliz, deformado).
Para
Goffman o indivíduo apresenta-se com uma identidade social virtual - aquilo que
imputamos ao indivíduo - e com uma identidade social real – atributos que ele
prova possuir. E não raras vezes a identidade social virtual é diversa da
identidade social real. Quando essa discrepância ocorre, acaba por estragar a
identidade social do indivíduo, afastando-o da “sociedade e de si mesmo de tal
modo que ele acaba por ser uma pessoa desacreditada frente a um mundo não
receptivo”.
O
estigma pode apresentar-se a partir de uma deformidade física, do caráter
individual moral ou da raça/religião/nação. Alguém pode ser estigmatizado por
ser portador de alguma “deficiência” física, pela aparente “deficiência” moral
(desempregado, malandro, vadio, preso, viciado), ou por ser oriundo de
determinada classe social, país ou seguidor de determinada religião.
O
estigma é tão representativo em nossa cultura que se acredita que o
estigmatizado não seja um humano “normal”, derivando, daí, as discriminações,
onde os termos pejorativos estigmatizantes acabam por reduzir o indivíduo a um
“ser” cego, aleijado, criminoso, homossexual, malandro etc.
Explica
Goffman que “construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a
sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando
algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de
classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado,
bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e
representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado
original”.
Também
o processo penal pode ser caracterizado como um instrumento estigmatizador, o
qual se constitui num fardo que o acusado carrega sozinho. Só quem já foi
alcançado pela grande e pesada “mão” da agência de controle penal consegue
dimensionar quão representativo é responder a um processo crime. Mesmo com uma
absolvição, a marca indelével de ter sido processado acompanha o sujeito pelo
resto de sua vida.
Vez
ou outra, já quase no esquecimento, terá alguém ou uma situação que o faça
lembrar-se do processo crime que respondeu, obrigando-o a reviver todo aquele
passado que procura esconder. Eventual absolvição não altera a marca, já que a
culpa, como lembra Bauman,
nada mais é senão o próprio fato de haver sido acusado, de ter sido levado a
julgamento e essa é uma culpa que não se pode negar, por mais que demonstre sua
inocência e por mais sólida que seja a prova que colija para sustentar a
demonstração.
Se
o fato de ser processado criminalmente já marca o sujeito, a condenação
estigmatiza-o ainda mais, seja pela desconstrução psíquica do ser, a partir de
uma internacionalização do adjetivo criminoso, seja pela exteriorização à
sociedade de sua condição de condenado.
A
sociedade enquanto instituição estigmatizadora é até aceitável, frente a
questões culturais que não se modificam em períodos curtos, onde o “ser”
perfeito e sem defeitos que não tem nada a reclamar é o homem jovem, branco,
casado, pai de família, urbano, heterossexual, cristão, de educação
universitária, bem empregado, de bom aspecto, sadio, bom peso, boa altura,
esportista (Goffman).
Agora
quando a estigmatização parte do próprio Estado, a situação agrava-se, pois
além de ocorrer a sua institucionalização, a mensagem que o Estado repassa à
população é que o estigma apresenta-se como um comportamento legítimo e
aceitável.
A
reincidência, institucionalizada e aceita pelo Estado, é o exemplo mais claro
da estigmatização atribuída a alguém. É a marca que o Estado impõe a todos os
condenados. É a etiquetização do “mau”, do “erro”, do ser humano “menos”
humano, é a diminuição do indivíduo em comparação ao outro.
Já
não basta toda a carga e embaraço que o processo penal impõe ao acusado, é
necessário que a condenação deixe marcas no indivíduo por toda a sua vida,
ultrapassando o limite temporal previsto no artigo 64, inciso I do CP. Acaba,
após 5 anos, a reincidência legal, mas não a social. O condenado é “carimbado”
como alguém que não pode ser esquecido pelo que fez.
A
reincidência é um símbolo do estigma, empregado contra a vontade do informante
(Goffman) e serve para reduzir o valor do indivíduo.
O
estigma da reincidência é tão forte que pode alcançar inclusive terceiros que
se relacionam com o estigmatizado. É comum policiais abordarem para averiguação
alguém que já teve “passagem” policial e revistarem todos os que com ele se
encontram. É como se o “estar” com alguém que já teve “passagem” simboliza que
não sou “confiável”.
Goffman
aprofunda o debate ao teorizar que “estar com ‘alguém’ é chegar em alguma
ocasião social em sua companhia, caminhar com ele na rua, fazer parte de sua
mesa em um restaurante, e assim por diante. A questão é que, em certas
circunstâncias, a identidade social daqueles com quem o indivíduo está
acompanhado pode ser usada como fonte de informação sobre a sua própria
identidade social, supondo-se que ele é o que os outros são. O caso extremo,
talvez, seja a situação em círculos de criminosos: uma pessoa com ordem de
prisão pode contaminar legalmente qualquer um que seja visto em sua companhia,
expondo-se à prisão como suspeito”.
Nessas
circunstâncias, o indivíduo deixa de ser alguém pelo que é, para ser alguém
pelo que fez. Não interessa mais o que ele pensa ou faz, pois a marca do seu
“deslize” é o que sobressai e prevalece.
É
usual encontrar sentenças penais onde consta que “o acusado é reincidente,
tendo um perfil voltado ao crime”, ou seja, não se julga o fato presente, mas o
fato pretérito. É como se a reincidência
autorizasse ou facilitasse a condenação. A consciência do julgador fica mais
tranquila para condenar.