terça-feira, 30 de outubro de 2012

Novo Código Penal é obscenidade, não tem conserto.

Abaixo segue entrevista concedida por Miguel Reale Júnior no site da revista Consultor Jurídico, onde fala sobre o novo projeto do Código Penal, expondo críticas sérias e que devem ser observadas, discutidas e socializadas por todos os operadores do Direito.
 
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"De todas as atividades que Miguel Reale Júnior já desempenhou na vida, a que melhor o define, e que exerceu por mais tempo, é a de professor. É livre-docente da Universidade de São Paulo desde 1973 e professor titular desde 1988. Foi lá também que concluiu seu doutoramento, em 1971. Tudo na área do Direito Penal.
 
Fora das salas de aula, foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, secretário estadual de Segurança Pública de São Paulo durante o governo de Franco Montoro (1983-1987), presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos desde sua criação até 2001 e presidente do PSDB. Mas é a versão "professor" que o jurista mais deixa aflorar nesta primeira parte da entrevista concedida à revista Consultor Jurídico no dia 21 de agosto.
 
O texto do anteprojeto de reforma do Código Penal, elaborado por uma comissão de juristas nomeada pelo Senado, recém-enviado ao Congresso, é hoje o alvo preferido do penalista. “O projeto é uma obscenidade, é gravíssimo”, diz. Para ele, os juristas chefiados pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, não estudaram o suficiente. “Não têm nenhum conhecimento técnico-científico”, dispara.
 
Segundo o professor, faltou experiência à comissão. Tanto no manejo de termos técnicos e científicos quanto na elaboração de leis. Entre os erros citados, o mais grave, para Reale Júnior, foi a inclusão de doutrina e termos teóricos e a apropriação, segundo ele, indiscriminada, da lei esparsa no código. “Não tem conserto. Os erros são de tamanha gravidade, de tamanha profundidade, que não tem mais como consertar.”
 
Leia a primeira parte da entrevista:
 
ConJur — Qual sua avaliação do projeto de reforma do Código Penal?
Miguel Reale Júnior — É uma obscenidade, é gravíssimo. Erros da maior gravidade técnica e da maior

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ISCA SOBRE RODAS: uma absurda proposta americana de combate ao crime




"Por meio de câmeras de alta tecnologia
escondidas no painel do carro e
sofisticados sistemas de rastreamento
por satélite, o Bait Car coloca você
na primeira fila para observar as
reações de audaciosos ladrões de carros”.

(Sinopse retirada do canal trutvbrasil)

         
       Como proposta de entretenimento o programa “isca sobre rodas”, exibido pelo canal pago trutvbrasil (assista à vídeos do programa), pode ser considerado de boa qualidade e inovador, seja pela tecnologia aplicada, seja pelas reações dos “ladrões de carro” quando presos logo após terem furtado um veículo.
  
         A ideia do programa é oferecer um carro como isca para ser furtado e, na sequência, a polícia efetuar a prisão, tudo sob as lentes de câmeras escondidas.

         Inicia-se a operação com uma abordagem falsa da polícia em um motorista/ator, o qual é obrigado a parar o veículo, geralmente em um bairro, num local adredemente escolhido pela equipe por ser mais vulnerável à subtração. Na abordagem, o falso motorista é preso por uma acusação qualquer e o veículo conduzido por ele fica estacionado na via pública, aberto e com as chaves na ignição.

         A partir daí o programa começa a tomar corpo. Várias equipes policiais estão estacionadas em locais estratégicos próximos ao veículo isca, acompanhando todo o movimento nas proximidades com câmeras escondidas nos veículos de apoio e no próprio bait car.

         Há todo um monitoramento com rastreadores e demais equipamentos técnicos que, quando acionados pela equipe policial, desliga o veículo isca e trava as portas com os ocupantes dentro.
        
         Ou seja, a polícia está à espera de alguém que queira furtar o veículo “abandonado” na via pública. A facilitação (veículo aberto e chave no contato) e o local escolhido pela polícia para armar a isca são situações intencionalmente propostas para que a subtração efetivamente aconteça.

         Quando alguém decide furtar o veículo, a equipe de monitoramento passa a acompanhar o trajeto do bait car, repassando as coordenadas para as demais equipes de apoio, que no encalço da isca fazem a prisão do “ladrão”, logo após o veículo ter sido desligado e as portas travadas pelo sistema de monitoramento à distância.

         Assim, continua o programa mostrando a prisão em flagrante e a condução do “ladrão” à delegacia de polícia para os procedimentos cabíveis.

         Como entretenimento o programa alcança a proposta a que se destina, qual seja apresentar ao telespectador o momento da subtração e da prisão, com todas as suas particularidades.

         Contudo, como combate ao crime a proposta é absurda, seja pela indução à prática criminosa, seja pela utilização do direito penal como instrumento de entretenimento ao grande público.

         No Brasil, tal situação não poderia sequer ser considerada crime, tendo em vista a configuração do crime impossível (artigo 17 do CP) pelo flagrante preparado, conforme Súmula 145 do STF:

Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.

         Nas condições apresentadas pelo programa, não há qualquer possibilidade do crime de furto ser consumado, o qual exige que a res furtiva esteja na posse tranquila do agente (REsp 678.220-RS e REsp 197.848-DF).

No caso, a polícia está a todo o momento no controle da situação, através de monitoramento por câmeras e por equipamentos de controle do veículo, fazendo a prisão quando achar mais adequado ao interesse do público. Não há qualquer possibilidade do agente consumar o furto. A sua prisão é uma questão de tempo.

         Portanto, pelo menos este formato não poderá ser copiado pela televisão brasileira, que a tudo copia, tendo em vista a não configuração do crime.

         A crítica que deixo é sobre a utilização midiática do direito penal, numa clara demonstração do desejo de punir por punir, sem a preocupação de políticas preventivas.

         Não é a toa que os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo. A política de lei e ordem, de “limpeza” urbana está a todo vapor.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

BREVES APONTAMENTOS SOBRE DIREITO E JUSTIÇA


O Direito pode ser demonstrado quanto à natureza, aos fins e às práticas jurídicas e sociais.

Quanto à sua natureza, entende-se o Direito a partir de um conceito cultural, nascido das práticas sociais que interagem na sociedade, de uma realidade referida a valores, de uma realidade cujo sentido é achar-se ao serviço de certos valores, conforme teoriza Miguel Reale (Teoria Tridimensional do Direito. p. 94.).

É importante observar que o Direito é um instrumento a serviço da ideologia de seu povo para a realização de um bem comum, onde o conceito de Direito acha-se dependente da ideia de Direito.

A ideia de Direito, por sua vez, tem correlação com a ideia de justiça. A justiça é o ponto de partida para o conceito de Direito, tendo em vista que o fim do Direito é o homem, a justiça e a paz social. Direito, portanto, é um instrumento, um modelo criado pelo ser humano para organizar a sociedade, com a finalidade descrita acima, através de leis, as quais se apresentam como uma forma de explicar e balizar a conduta humana.

Adão Longo vai além, ao afirmar que o “Direito não é só a lei, a norma de conduta na vida social. O Direito é mais que isso: é a humanização da Justiça. Antes mesmo de ser uma obra corporificada do homem, o Direito já existe como figura ideal, segura e necessária ao relacionamento humano. Tanto assim que, malgrado a incineração de todos os códigos ou a violação de todas as leis, o Direito subsistirá sempre como uma essência da vida social” (O direito de ser humano. p. 26).

Mas o que se entende por justiça? Apesar de ser uma figura abstrata, idealizada pelo homem, justiça pode ser entendida sob dois aspectos: a) a justiça, no sentido subjetivo, é ser moralmente bom (Moral); tem relação entre homens; não se mede pelo Direito positivo - vai além da regra, sendo justiça como ideal político de liberdade e de igualdade; tem sentido de valor. b) a justiça, no sentido objetivo, pode ser identificada mediante a observação de alguns critérios, atribuíveis à lei: 1) quando há correspondência entre o conteúdo da lei e a demanda social; 2) Quando a lei visa garantir igualdade de direitos; 3) Quando a lei identifica-se com o próprio fato gerador (critério de verdade); 4) Justiça como legitimidade ética.

A primeira acepção pode ser atribuída a Clarence Morris, que em sua obra “A justificação do Direito” assim retira-se a seguinte passagem: “Expostas de maneira muito simples, minha teoria de justiça é a seguinte: quanto mais satisfaça às genuínas e importantes aspirações da sociedade, mais justo será o sistema legal” (citado por MELO, Osvaldo Ferreira de. Fundamentos da Política Jurídica. p. 110).

Melo explica que Clarence Morris, retomando a ideia trazida por Aristóteles (teoria da vontade geral) e mesmo não trazendo critérios que possam identificar as “genuínas e importantes” aspirações da sociedade, constrói sua teoria com uma exposição clara e objetiva.

O segundo critério pode ser atribuído, modernamente, a doutrina contratualista de John Rawls, para quem a justiça deve ter por ideal político a liberdade e a igualdade, no sentido social mais amplo possível:

Primeiro, cada pessoa deve ter a mais ampla liberdade, sendo que esta última deve ser igual à dos outros e a mais extensa possível, na medida em que seja compatível com uma liberdade similar de outros indivíduos. Segundo, as desigualdades econômicas e sociais deve ser combinadas de forma a que ambas correspondam à expectativa de que trarão vantagens a todos e que sejam ligadas a proposições a órgãos abertos a todos (Uma teoria da justiça. p. 67).

A terceira ideia, segundo Melo (op. cit. p. 112), tem por objetivo arbitrar o justo e o injusto em razão do conhecimento do verdadeiro ou do falso que fundamente a norma (adequatio intelectus et rei). Os falsos fundamentos da norma as tornam injustas.

Por fim, a quarta concepção de justiça exige a coexistência harmoniosa entre a norma de Direito e a norma de Moral. Este conceito parte do entendimento de que a consciência Jurídica identifica a justiça da norma com uma obrigação moral do agir, que a mesma deve prescrever. Sendo o conteúdo de uma norma um pressuposto para o juízo do justo, pode-se afirmar que não há justiça que não seja uma valoração ética (MELO, Osvaldo Ferreira de. op. cit. p.113/114).

Importante salientar que não é apenas o senso de justiça que deve ser realizado pelo Direito. Há, também, a ideia de utilidade, que mesmo distante do conteúdo ético e moral da norma, apresenta-se de suma importância quando se trata de normas técnicas, organizacionais (normas de trânsito, a ABNT etc.). Estas, por não terem um conteúdo que se relacionem com os desejos e valores sociais, são necessárias para a complementação da regulamentação e sua utilidade social é quem vai lhe atribuir o caráter de legítimas ou ilegítimas.

Assim, o sentido do Direito implicaria obrigatoriamente na aglutinação do sentido de justiça (dos valores referenciais) e do sentido de utilidade social, dos fins que ele, o Direito, deva e possa alcançar (MELO, Osvaldo Ferreira de. Op. cit. p. 105).

Desta forma, quanto aos fins, o Direito pode ser demonstrado como um instrumento em busca da justiça e da paz social.

No tocante às práticas sociais e jurídicas, o Direito demonstra-se na ideia de que tem origem nas práticas sociais, onde a sua exteriorização, a norma, deve ser legitimada pela sociedade e o sentimento de justiça deve sempre estar presente na lei e na decisão proferida pelos seus operadores.

Por fim, cabe realçar as características do Direito. Apesar de atribuírem-no como características a exterioridade, a heteronomia, a coação e a bilateralidade, apenas a imperatividade e a exigibilidade são atribuíveis exclusivamente ao Direito.

A exteriorização – regula a conduta exterior dos homens – não é uma característica sempre presente no Direito, que também pode regular as condutas interiores, na medida em que anuncia ou deixa esperar uma conduta exterior. Ex: diferentes formas de culpa e a boa-fé; o perigo Moral a um menor já autoriza a intervenção e proteção do Estado (RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. p. 179).

A heteronomia – homem necessariamente obrigado a obedecer regras postas por outrem – também não é impreterível. Para Reale (Filosofia do Direito, p. 286), o Direito também pode ser autônomo (inerente à Moral) quando as regras são postas pelo indivíduo ou reconhecidas espontaneamente por ele. Pode haver cumprimento de regra jurídica com plena correspondência entre a “vontade da lei” e a “vontade do obrigado”.

A coação, para Kant e Jhering, é elemento necessário e intrínseco ao Direito. Já para Thomasius o Direito não se realiza sempre pela força, podendo haver a realização espontânea. Deve ser diferenciada a coação no sentido de coercível (coercibilidade) – estado latente, em potencial (Thomasius, Reale) – da coação no sentido de coercitivo (coercitividade) – coerção sem a qual não haveria Direito (Kant e Jhering).

A coação também se apresenta como característica da religião, dos costumes, não sendo, portanto, exclusiva da norma jurídica. 

Já a imperatividade e a exigibilidade são características exclusivas do Direito, na medida em que a aplicação da norma jurídica é destinada a todos, indistintamente, a qual deve ser obrigatoriamente observada, estando amparada pelo império do Estado.

A exterioridade, a heteronomia, a coação e a bilateralidade, como tantas outras, podem ser vistas como adjetivos do Direito. 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

SUPERANDO O MITO DA VERDADE REAL: A artimanha para “legitimar” a produção de provas de ofício pelo juiz.





“Eu já passei por todas as religiões
Filosofias, políticas e lutas
Aos 11 anos de idade eu já desconfiava
Da verdade absoluta.”
(As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor – Raul Seixas)

Não são poucas as doutrinas de processo penal e, consequentemente, os juristas em geral que apregoam ter o processo penal a função de buscar a verdade real. Para isso, sustentam que o juiz está autorizado a ir além das provas existentes no processo, na busca do fato “verdadeiro”.
Tenho compartilhado com meus alunos que a verdade real é um sofisma, um embuste, uma artimanha para “legitimar” a produção de provas de ofício pelo juiz, até mesmo antes de oferecida a ação penal (art. 156 CPP). Se observarmos as doutrinas processuais tradicionais, encontraremos a posição de que a função do processo penal é buscar a verdade real, a qual, para ser desvelada, autoriza o juiz a não ficar adstrito à prova trazida pelas partes, podendo, de ofício, sair à procura de elementos probatórios que possam “esclarecer o fato”.
O problema é que a verdade real pressupõe uma verdade absoluta, que está no todo, devendo o juiz, para encontrá-la, conhecer a totalidade dos fatos, absolutamente todas as variáveis que envolveram o crime o que, sejamos francos, é algo teratológico.
Achar que isso é possível (encontrar a verdade real/absoluta) me aparenta certa ingenuidade ou até mesmo traquinice.
Ingenuidade, pois o processo penal não tem por função buscar a verdade real e tampouco fazer justiça. O processo penal tem por função: 1) instrumentalizar a aplicação do direito penal; 2) legitimar a aplicação da pena, garantindo os direitos do acusado e; 3) reproduzir o fato aparentemente criminoso pretérito, por meio da prova.
Ou seja, o processo penal tem caráter instrumental.
Jamais o processo penal teve a pretensão de fazer “justiça”, até porque esta categoria é subjetiva e incerta quanto à sua extensão. Tampouco tem a prepotência de buscar a verdade real, absoluta. Esta é inalcançável, não nos pertence.
Ora, se aceitarmos a ideia de que o processo penal busca a verdade real, tendo o juiz o poder de buscar, mesmo de ofício, a prova que demonstre esta verdade, então toda a sentença penal, por conclusão lógica, será absolutamente verdadeira, representando o que realmente ocorreu. Com esta premissa, a sentença não poderá ser modificada em grau de recurso, pois ela compreendeu e captou os fatos na sua totalidade.
Logicamente que assim não ocorre. Muitas sentenças são reformadas em grau de recurso, onde o tribunal ad quem, analisando as mesmas provas, conclui diferentemente do juízo ad quo. Então, com quem está a verdade agora? Será que alguém está mentindo? Se a decisão de primeiro grau, onde o juiz fez prova de ofício, reproduziu a verdade real (absoluta), como pode esta “verdade” não ser aceita pelo tribunal? O que era verdade passou a ser inverdade?
A sentença judicial representa simplesmente uma crença do juiz (Aury Lopes Jr.). Ele conclui sobre aquilo que as partes lhe demonstraram por intermédio da prova (e prova é somente o que for produzido em contraditório judicial, vide artigo 155 CPP). A sentença judicial é um posicionamento fundamentado que o juiz é obrigado a proferir, mas o quanto este posicionamento representa o que realmente ocorreu ninguém sabe.
A defesa desta ingênua ideia também é uma traquinice que, no fundo, pode não ser tão ingênua assim. Matreiramente sustenta-se que para buscar a verdade real o juiz necessita produzir provas de ofício, tanto que o art. 156 do CPP prevê esta prática.
Com esta autorização, quebrada está a imparcialidade do juiz, jogando-se às favas o sistema acusatório previsto na CRFB/88 (o artigo 129, inciso I, garante a exclusividade da acusação por parte do MP), transformando o CPP em um instrumento inquisitivo, onde a gestão da prova está nas mãos do julgador, podendo agir também enquanto acusador, tal qual agia-se na época da inquisição (Geraldo Prado, Aury Lopes Jr., Jacinto Nelson de Miranda Coutinho).
Passados 24 anos da Constituição Federal ter estabelecido o sistema acusatório (juiz imparcial), ainda temos dificuldades de assimilar esta quebra de paradigma, insistindo na verdade real e na produção de provas de ofício pelo juiz.
Mas, aos poucos, este mito está sendo deixado de lado. Aos poucos perceberão que o processo penal não tem por função buscar a verdade, mas tão somente ser um instrumento de aplicação do direito material e de controle das garantias fundamentais individuais. Aos poucos perceberão que a gestão da prova não pode ficar a mercê do juiz, sob pena de quebrar a imparcialidade exigida pela CRFB/88 e ficará para traz, na memória que deve ser esquecida, a época em que o CPP autorizava o juiz a fazer provas de ofício sob o falso manto da verdade real.