quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A lacuna paraláctica entre violência e Direito Penal

Publicado originariamente no emporiododireito.com.br
A pacificação das relações sociais, a segurança da população e a proteção da vítima são argumentos postos à venda nas prateleiras do Direito Penal tradicional e comprados a um preço barato.
O consumidor que os adquire não percebe como está sendo enganado. O produto não satisfaz o anúncio marqueteiro tão propalado.
A ideia de pacificação e prevenção não passa pela punição e ameaça (Direito Penal). Esse raciocínio é absolutamente equivocado e, apesar desta crítica ser repetitiva, se faz necessária justamente pela importância de se afirmar o óbvio.
A retribuição como forma de negar o crime, a prevenção geral para desestimular o pretenso infrator e a prevenção especial como instrumento (utópico) de ressocialização, são inverdades mercantilizadas por meio de discursos fascistas (que não se sustentam frente ao diálogo) e adquiridas sem a necessária leitura do rótulo e prazo de validade. É barato, está na promoção, então coloca no carrinho.
Somente quando o cidadão consumidor se vê fazendo parte de um processo crime enquanto vítima é que irá perceber que foi enrolado. O que era para ser algo que satisfizesse seus anseios de segurança acaba sendo um objeto estranho que o coloca no centro de uma relação jurídica violenta e histérica.
Ele, agora vítima, que não teve a segurança garantida pela criminalização excessiva, se vê como um objeto fora de lugar no jogo processual.
Irá fazer parte do processo enquanto mero legitimador do poder punitivo estatal, que depende de uma vítima[1] para o fato consubstanciar-se em crime. A sua opinião e satisfação não são elementos que importam.
A percepção de que tudo o que está sendo feito não é para lhe possibilitar uma vida mais segura, mas tão somente para cumprir com a disposição legal, abre (ou pelo menos deveria abrir) seus os olhos para a farsa do Direito Penal.
A vítima decididamente não é um sujeito de direitos[2], já que não expressa a sua vontade e, se a expressa, não tem nenhuma garantia de que será considerada no curso do processo.[3]
No Direito Penal tradicional a tomada de consciência da vítima vem tarde demais, quando tudo já ocorreu, bem a sua frente, mas sem que se desse conta de como isso o afetou ou deixou de afetar.
É o que Zizek chama de retardo temporal: “(…) um gato anda por cima do precipício, sem chão sob suas patas, mas só cai quando olha para baixo e percebe que não há chão firme”.[4]
Se percebo o Direito Penal enquanto segurança e, logicamente, como opositor da violência, irei me frustrar. Agora se observo o Direito Penal como sendo também violência, já sei o que dele esperar.
Essa visão paraláctica é necessária e não significa uma oposição entre duas coisas, mas uma visão oposta do mesmo objeto. É isso que me permite ver o Direito Penal e a violência como sendo duas partes do mesmo Um.
A isso Zizek denomina de lacuna paraláctica, aquilo que divide um único e mesmo objeto de si mesmo.[5]Ela substituiu a polaridade dos opostos pelo conceito de lacuna, inerente ao próprio Um, denominado de paralaxe: Lacuna que separa o Um de si mesmo.[6]
Em outras palavras, não há dualidade de oposição, mas uma visão paraláctica do mesmo objeto. A paralaxe é a lacuna existente entre as oposições do objeto. Então o que há é uma divisão do próprio objeto em si. A lacuna permite que se olhe o objeto em dualidade, é a liberdade que se tem para observar.
O Direito Penal é uno, mas visto a partir da lacuna paraláctica, encontramos a segurança e a violência como sentidos que o forma. Não há dualidade entre Direito Penal (segurança) e violência. Eles fazem parte do mesmo objeto ou, nas palavras de Zizek, são “substancialmente a mesma coisa”.[7]
A violência é o pressuposto da segurança e esta, por sua vez, só se efetiva através de violência (ou ameaça). Então o Direito Penal, ao mesmo tempo que traduz segurança, também traduz violência.
Todos os envolvidos no sistema penal são violentados. A vítima, em dois momentos distintos (violência natural do fato e violência institucionalizada pelo processo penal), o autor do fato (violência psicológica no curso do processo, sem contar as mazelas no curso da execução penal), os manuseadores do poder de acusar (MP) e punir (juiz), pelas angústias diárias frente à violência alheia e a ineficácia dos sistema como um todo (comum esses profissionais sentirem-se limitados frente à demanda da violência), os policiais e os agentes prisionais por razões óbvias.
Por isso a importância da internalização da linguagem,[8] pois é ela que determina meu entendimento sobre o fato ou a palavra. A representatividade que eu tenho da palavra ou fato é que me orienta o entendimento de ambos.

Notas e Referências:
[1] Referimo-nos aos crimes que necessitem de vítima individualizada.
[2] Com exceção da ação penal privada, onde ela é parte autora legitimada.
[3] Isso nos crimes de ação penal pública. Por exemplo, no crime de furto, mesmo a vítima dizendo que o bem subtraído não lhe faz falta, ou que não teve prejuízo algum, o processo seguirá com uma possível condenação, caso existam provas de autoria e materialidade. Lembrando que os tribunais ainda titubeiam em aplicar a bagatela em caso de reincidência.
[4] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 271.
[5] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 33.
[6] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 18.
[7] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 17.
[8] BRONOWSKI, Jacob. As origens do conhecimento e da imaginação. Tradução de Maria Julieta de Alcântara Carreira Penteado, 2 ed., Brasília: Editora UNB, 1997, p. 25.