quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O Direito Penal da Multidão em Allan Poe


Publicado originariamente no justificando.com
No conto O Homem da Multidão[1], de Edgar Allan Poe, um homem passa a observar o cotidiano da cidade de Londres pelas janelas de uma cafeteria, destacando o papel de cada um dos transeuntes a partir dos caracteres individuais que apresentam, desde a vestimenta até seus semblantes:
De início, minha observação assumiu um aspecto abs­trato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desce aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Tudo ia bem até que o observador percebe o semblante de um velho decrépito, de uns 65 anos de idade, fazendo nascer nele, “de modo confuso e paradoxal”, as ideias de “vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo deses­pero” que aquele desconhecido transmitia.
Levado a saber mais sobre o homem misterioso, passou a segui-lo pela cidade. Percebeu que o homem se limitava a andar de um lado para o outro, sempre em busca da multidão, assim fazendo dia e noite sem fim.
O conto autoriza inúmeras interpretações, talvez tantas quantos forem os leitores (René Girard). No meu sentir, é um conto que busca refletir o coletivo moderno e ao mesmo tempo a moderna solidão coletiva.
Do conto podemos extrair a ideia de que a massa é uma condição para a existência do ser andante, que vaga pela cidade a procura do movimento, do aglomero. Ao tempo que ele precisa da massa para sentir-se, evita qualquer contato com as pessoas que cruzam por ele. O coletivo é o que lhe dá sentido de existência, mas uma existência isolada. Procura a multidão, mas esta inserção não o faz menos solitário.
A percepção da individualidade se dá a partir do outro (por isso busco o coletivo, onde a minha individualidade se destaca para mim). Contudo o coletivo, por si só, não me impulsiona a sair da solidão. Não é fazer parte da massa que me torno alguém com ramificações coletivas. Faço parte em número, mas não sintonizo com ela.
O homem da multidão se deixa levar pelo fluxo contínuo dos demais passantes. Para não perder o trilho da multidão, se autoriza a andar por locais de diferentes tonalidades morais e comportamentais. Um indicativo de que pela busca do andar coletivamente, do fazer parte de algo, mesmo que abstratamente, não nos damos conta dos caminhos e trajetos que nos permitimos andar.
O homem na multidão é um ser levado pelo ritmo (ou se deixa levar) da cidade. Um ser que não pensa, não vive, não sente, não ama, apenas faz parte. Está mas não está. O homem da multidão é um ser isolado coletivamente.
Mas ele pode apenas se imiscuir na massa para fugir de sua individualidade e aí a reflexão é toda inversa à até aqui exposta.
O homem moderno tem essas características que se radiam para os demais setores sociais. O legislador penal (se é que existe esta categoria) acompanha o homem da multidão, numa andança sem rumo no encalço da massa. Legisla pelo movimento da maioria, mas não se deixa fazer parte dela, já que é para uma minoria que olha e beneficia.
Esse legislador está sempre à procura do apoio coletivo, muda de rumo, transita, atônito, de um lado para outro, sem saber onde deseja chegar. Se apresenta como algo com uma individualidade ímpar, mas no fundo sequer sabe quem é ou para que serve.
Destas andanças é que surgem leis esquizofrênicas, respaldada pela esquizofrenia da maioria. Nesse rumo sem rumo nascem as propostas de redução de idade penal, do novo Código Penal, de redução de direitos e garantias (Código Moro), da criação de novos tipos penais, dos aumentos de penas sem qualquer estudo razoável (ou desarrazoável que seja), enfim, um direito penal da multidão.
Apesar destas observações, o legislador penal pode apenas se imiscuir na massa para dissimular sua real intenção e aí a reflexão é toda inversa.
_________________________
[1] POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Círculo do Livro.

terça-feira, 30 de junho de 2015

Quando o saber ou o viver incomodam

Publicado originalmente no justificando.com.br

Quando não sei, não assumo responsabilidades e tomo decisões sem me importar “muito” se elas são corretas ou não. Quando adquiro o conhecimento sobre algo, minhas posições passam a ter um significado maior para mim e para os outros. A reflexão passa a fazer parte da minha decisão e os efeitos do ato passam a ser muito mais importantes que as causas.
Quando não vivencio determinada situação, não tenho condições de compreendê-la adequadamente. Meu raciocínio sobre ela é emprestado, e quem me empresta pode ser aquele que a viveu, ou terceiros que, portanto, estão na mesma condição que eu.
Assim, para dizer que determinado ato é absurdo (correto ou errado), a consciência tem necessidade de estar viva[1], e esta vivacidade se adquire com o saber e o viver.
Sem isso “conhecemos” a partir do que a massa, esse buraco negro em que o social se precipita, nos diz, justo ela que é opaca, nebulosa, cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso.[2]
As histórias abaixo, que povoam o cotidiano, são exemplos tímidos, mas fiéis, de como nossa impressão sobre algo pode mudar, a partir do momento em que olhamos o fato com a experiência do saber e da vivência.
1) Sou a Ana e quando era pequena achava engraçadas as histórias que meu tio contava sobre suas aventuras alcoólicas. Bebia, brigava, dormia, vomitava, ria, acordava e tudo estava certo. Muitas risadas dei ouvindo ele contar e imitar suas passagens, até que uma noite o vi chegando em casa, embriagado, e, por uma discussão qualquer, agrediu severamente sua mulher, minha tia. A partir de então não mais achei engraçado suas histórias. Hoje sei que esses contos reais escondem muita violência e ruptura familiar. Não é engraçado, mas ainda muito se ri disso.
2) Meu nome é Charles e sempre achei normal a infidelidade masculina. Meu pai traiu muito, sempre aceitei, mas quando soube que minha mãe havia feito isso, não gostei, afinal ela não podia. Vivenciei algo diferente e passei a perceber que a dor que ela sentia quando meu pai a traia era a mesma que meu pai sentiu quando ela traiu. E a dor dos dois passou a ser a mesma dor para mim. Não houve mais distinção.
3) Sou Jonas e nunca fui um aluno aplicado, sempre estudava de véspera e colava em todas as provas. Era, como dizem hoje, “ninja” na arte da cola. Por mais que meus pais me cobrassem, nunca dei importância para o estudo. Fiz uma faculdade “meia boca” e hoje tenho um emprego bom, mais por sorte que por merecimento. Pensei que fui esperto até que meu filho começou a frequentar a escola. Malandro também, não estudava. A cola era sua maior aliada. Lembrei de mim. Não gostei do que lembrei. Vi-me ali. Não gostei do que vi. Foi uma luta para mudar minha opinião sobre o “ser esperto”, mas hoje sinto que agir assim não levaria a nada. Precisou meu filho mostrar-me isso. Não bastaram os sermões que levei, foi um “sentir na pele” que me fez mudar o pensar e o agir. Hoje faço uma pós-graduação e estudo como nunca estudei na vida.
4) Meu nome é Alan, tenho muitos amigos no whatsapp e seguidamente recebia vídeos em que o namorado gravava a relação com a namorada e, depois, com o fim do namoro, os “vazou” na net. As meninas, algumas conhecia, mas a maioria não tinha a mínima ideia de quem eram. Olhava os vídeos e encaminhava para outros grupos e amigos. Fiz isso muitas vezes. Tudo isso era muito normal. Não sei e nem me importava a consequência disso tudo para a menina filmada. Bem, até que num dia desses recebi um vídeo onde um casal mantinha relação sexual. A menina do vídeo era minha irmã, de 19 anos. O rapaz, seu ex-namorado, desejo até hoje estrangular por ter vazado o vídeo. Dessa vez, não tive coragem de passar adiante. Foi aí que me lembrei de todos os vídeos que já havia repassado. Senti-me muito mal. Agora quando recebo vídeos assim, não mais os encaminho, quebro a corrente.
5) Sou o pastor Vinícius e me orgulho de ter sido criado numa família temente à Deus. Cresci dentro da casa do Pai e pregava o evangelho desde muito cedo. Lembro que me foi ensinado que a homossexualidade era uma doença e casamento homossexual um ato indigno e contrário aos ensinamentos bíblicos. Tive alguns amigos homossexuais, mas fui me afastando deles pela imposição dos meus pais e pelas minhas próprias convicções. Cresci e me tornei pastor. Sou esposo e pai. Amo o que faço e sinto que consigo ajudar muitas pessoas. Tenho um filho, Carlos, de 17 anos. Descobri ano passado que ele é gay. No início não aceitei, levei-o ao médico, ao psicólogo, psiquiatra, mas isso não o fez mudar (só depois entendi que não é uma doença). Ele frequenta a minha igreja e é uma pessoa maravilhosa. Professa a fé cristã com muita sabedoria. Mas, é gay. Mas, é meu filho. Hoje, após muita reflexão e ajuda, vejo que ele não deixou de ser meu filho e nem de ser uma ótima pessoa só porque tem outra orientação sexual. Ele me ensinou a entender que essa condição não o faz menor. Hoje, e somente porque eu vivi isso, entendo e respeito a homossexualidade. Continuo pastor, na mesma igreja, a qual abraçou não só meu filho, mas também o seu namorado. Eles irão se casar.
6) Estudo odontologia, venho de família boa, onde nunca me faltou nada. Meu nome é Karen, sou uma pessoa correta, estudiosa e feliz. Não tenho reclamações a fazer, apenas uma observação sobre algo que ocorreu há 3 anos atrás. Lembro que, na época, o Brasil reduziu a maioridade penal para 16 anos. Achei essa decisão correta. Até me manifestei em redes sociais favoravelmente a isso. Meus motivos para apoiar? Não sei direito. Aliás, apoiei porque todos queriam, e pensava que isso era importante para diminuir os crimes que esses menores praticavam. Se li alguma coisa a respeito na época? Não, apenas noticiário. Meus estudos nunca foram nessa área das humanas. Interessava-me saber a estrutura facial e tudo o que envolvia a dentição. Para mim, na época, a cárie e o flúor eram mais importantes que o ser humano. Hoje? Bem, hoje penso diferente. Por quê? Porque meu primo de 16 anos está preso. Estava vendendo droga na escola. Logo ele que vi crescer. Educação boa. Teve tudo. Quis vender para poder comprar a droga que usa. Está preso e vai ficar muito tempo. Minha família acabou. Na época, achava que apenas os menores pobres, moradores de rua ou aqueles que praticam crimes violentos iriam presos. Nunca imaginei que um familiar meu fosse preso. Hoje eu sei que meu primo precisa de muitas coisas para mudar, mas certamente não precisa estar preso. Acho que foi um equívoco reduzir a idade penal.
A pergunta que fica é: o que mudou? O fato ou a percepção sobre ele?
Com Lacan[3] é possível explicar que o real, mesmo com toda a perturbação que receba, estará sempre no seu lugar. O real leva o simbólico colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso. Só o simbólico pode ser mudado de lugar e, portanto, ser dito que o mesmo está a faltar.
Na paralaxe de Zizek[4] é possível compreender a mudança de posição. O objeto continua o mesmo, no mesmo lugar (real), mas o observador é quem muda de lugar e passa a “olhar” o objeto a partir de um ângulo diferente, atribuindo-lhe um sentido diverso do inicial, ancorado em sua “nova” simbologia sobre o fato, que é adquirido, nos exemplos dados, a partir da experienciação fática e teórica individual.


REFERÊNCIAS

[1] CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 16.
[2] BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: O fim do social e o surgimento das massas Brasília: Editora Brasiliense, 1985, p. 6.
[3] LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 28.
[4] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

terça-feira, 2 de junho de 2015

A necessária compreensão da atribuição da Guarda Municipal: Análise crítica do julgado do TJSC

Publicado originalmente no emporiododireito.com.br
Lenio Streck nos chama a atenção de que é preciso antes compreender para só depois interpretar, evitando as variações interpretativas do texto legal, o que leva ao solipsismo e ao julgamento conforme a consciência, o querer ou conveniência de cada um.
Desta forma e como preparo ao assunto de fundo, devemos compreender três situações jurídicas, que pela aparente facilidade compreensiva tem gerado interpretações equívocas.
A abordagem visa preparar terreno para a análise do julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina no Recurso em Sentido Estrito nº 2015.002563-7.
1º ponto – A Guarda Municipal tem previsão constitucional no artigo 144 § 8º, cujo texto é o seguinte: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”. 
Percebe-se claramente que a atribuição da Guarda Municipal é exclusiva para proteger os bens, serviços e instalações do município e mais que isso não precisa ser dito. 
Nem mesmo a expressão “conforme dispuser a lei” autoriza uma compreensão diversa, já que a lei infraconstitucional não poderá atribuir à Guarda Municipal função diferente da prevista na Constituição Federal. Se assim o fizer, é inconstitucional, como de fato é a Lei nº 13.022/14, que criou o Estatuto da Guarda Municipal, conforme expliquei no artigo “O Estatuto da Guarda Municipal é inconstitucional”[1], que pode ser lido aqui (http://justificando.com/2015/02/13/o-estatuto-da-guarda-municipal-e-inconstitucional/).
Portanto, a Guarda Municipal é destinada a este fim e se praticar atos além desta moldura legal usurpa função pública e comete ilegalidades.
2º Ponto: A prisão em flagrante pode ser feita por qualquer pessoa do povo, mas as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem se encontre em flagrante delito (artigo 301 do CPP).
Está em flagrante delito aquele que for encontrado nas condições do artigo 302 do CPP. Desta forma, a prisão em flagrante só pode ser feita por qualquer pessoa do povo se o “flagrante” for evidente. Não poderá, por exemplo, alguém que não tenha função de polícia invadir uma residência ou abordar um veículo na “suspeita” de que ali esteja consumando-se um crime para então fazer a prisão. Não pode “buscar” o flagrante, pois para isso precisa ter autoridade para fazer um ato anterior, que é a busca.
A autoridade que deve fazer a prisão em flagrante também só estará obrigada a agir se a consumação do crime for perceptível para ela. Em caso de suspeita, deverá proceder à busca, observando-se as regras desta cautelar.
3º ponto: A busca e apreensão, apesar de estar disciplinada como uma prova é, antes disso, uma medida assecuratória que pode recair sobre bens e pessoas.
Está prevista a partir do artigo 240 do CPP e dividida em busca domiciliar e pessoal. Na situação de flagrância tem a autoridade policial (leia-se Delegado de Polícia) poder de polícia para buscar e apreender na cena do crime os objetos que entenda necessário para a investigação (art. 6º inciso II do CPP). Fora da cena do crime a autoridade policial tem uma limitação para atuar e que deve obedecer para não macular a prova.
Quanto à busca pessoal, quando não houver mandado judicial, a mesma somente pode ser realizada pela autoridade competente (artigo 244 do CPP).
Mas aqui uma observação importante. A busca só pode ser feita por autoridade que tenha atribuição para investigar o crime. Por exemplo: se há fundada suspeita de tráfico internacional de drogas a autoridade policial que tem atribuição para fazer a busca é a Polícia Federal. Outro exemplo: Em caso de fundada suspeita de crime de porte de arma de fogo, a busca deverá ser feita pelas polícias preventiva e judiciária, já que são elas que possuem atribuição para combater e investigar este crime.
Não poderia, neste exemplo, a Guarda Municipal fazer uma busca no interior de um veículo, de uma residência ou até mesmo uma busca pessoal, pois não tem ela, como já visto, atribuição para combater esta infração. A não ser que o crime esteja diretamente ligado aos bens, serviços e instalações que visa proteger.
Esses os três pontos que julgamos importante compreender para avançarmos na análise do julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
O fato resume-se no seguinte:
Guardas municipais teriam presenciado o acusado, em via pública, oferecendo CD’s e DVD’s com indícios de falsificação e, fazendo a abordagem, encontraram no interior de sua bolsa 180 unidades falsas, dando voz de prisão em flagrante e levando-o a uma Delegacia de Polícia, onde foi autuado pelo crime do artigo 184 § 2º do CP.
Oferecida a denúncia neste tipo penal, o juiz Alexandre Morais da Rosa, da Vara Criminal da Capital, rejeitou a inicial apontando: a) incompetência dos guardas municipais; b) afronta ao disposto nos arts. 530-C e 530-D do CPP no que se refere ao termo de exibição e apreensão e laudo pericial; c) incidência do princípio da insignificância.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina deu provimento ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público e recebeu a denúncia.
No voto do Desembargador Relator Rodrigo Collaço assim ficou fundamentado, no que se refere especificamente sobre a legalidade da prisão feita pela Guarda Municipal:
Sobre o primeiro item, conforme bem apontado pelo Parquet, a situação em voga prescinde de qualquer discussão sobre as atribuições dos membros da Guarda Municipal de Florianópolis, isto é, se estariam eles a extrapolar o disposto no art. 144, § 8º, da Constituição Federal.
Isso porque o fato descrito na denúncia e retratado nos elementos informativos do inquérito policial revela que o ora recorrido teria sido abordado pelos agentes públicos do órgão local enquanto em flagrante delito. Qualquer do povo, então – e não só o agente da segurança pública –, podia dar voz de prisão ao suposto infrator.
(…).
No caso dos autos, a narrativa dos agentes públicos dá conta de que o acusado teria sido visto enquanto oferecia à venda CDs e DVDs com indícios de falsificação (fls. 3 e 4), razão por que fora preso em flagrante.
Nessa toada, sem adentrar-se em discussões acerca da competência da Guarda Municipal – cuja inércia, fosse o caso, é que poderia ensejar questionamentos sobre a quebra ou não de dever funcional -, é mister reconhecer a higidez da atuação dos agentes públicos no caso em apreço e, como corolário, dos objetos apreendidos em poder do acusado.
(…).
A imputação tal como manifestada indica um grau de reprovabilidade na conduta do agente que não pode ser desprezado. Há fortes indícios de que o denunciado exercia a posse, com finalidade de mercancia, de cento e oitenta discos digitais de vídeo e de áudio com conteúdo protegido pelas normas de direito autoral, a revelar sua nocividade para o objeto jurídico tutelado pela norma penal (violação a direitos do autor, evasão fiscal, quebra da livre concorrência etc.). 
Penso que a decisão proferida pelo TJSC faz uma interpretação extensiva contra norma processual garantista, o que não é permitido.
Pelas premissas inicialmente apresentadas, é certo que a Guarda Municipal tem atribuição limitada pela Constituição Federal. Poderá, sim, efetuar prisão em flagrante como qualquer pessoa do povo, a despeito do permissivo processual. Contudo não foi isso que me parece ter havido no caso presente.
Pelas informações contidas no próprio acórdão e na sentença reformada, podemos verificar que a Guarda Municipal de Florianópolis, em ronda diária pelas ruas daquela capital, presenciou o acusado oferecendo à venda Cd’s e DVD’s com indícios de falsificação. Vejam que não há aqui situação expressa de flagrante, mas sim indícios de que haveria um crime.
Esses indícios, penso, não autorizam a Guarda Municipal a fazer a prisão, pois não está este fato ainda enquadrado como “flagrante”. Poder-se-ia pensar que o acusado foi preso com objetos que façam presumir ser ele o autor do delito, mas esta modalidade só se aplica ao agente preso “logo depois” (art. 302 inciso IV do CPP), o que não é o caso, já que o acusado foi abordado fazendo a venda, não havendo espaço de tempo e território percorrido.
Ademais, para verificar se efetivamente o acusado estava em situação de flagrância (o tipo penal pressupõe a busca do lucro direto ou indireto e para isso é imperioso que o agente traga consigo uma quantidade razoável que indique a mercancia), seria necessário uma busca pessoal para localizar os demais objetos “ilegais” que ele possuía em sua bolsa (que assim foi feito conforme mencionado na sentença).
Acontece, que a busca pessoal só pode ser feita por mandado judicial ou, sem ele, pessoalmente pela autoridade competente, competência essa que a Guarda Municipal não possui.
Portanto, a eventual configuração do flagrante só se efetivou após a Guarda Municipal ter feito a busca pessoal e encontrado os diversos CD’s e DVD’s que indicavam o pretenso lucro exigido pelo tipo penal.
O que se procura, neste caso, é retroagir os efeitos do flagrante delito para legalizar um ato (busca) feito de forma ilegal.
A legalidade deve estar presente já no primeiro ato que deflagre a operação, e qualquer vício neste ato primeiro macula todos os demais (Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada – art. 157 § 1º do CPP).
Como bem mencionou a sentença reformada, a Guarda Municipal pode sim prender em flagrante delito, o que não pode é “fazer “blitz”, mandar parar, fazer averiguações e proceder à apreensão de objetos – mesmo que supostamente ilícitos – porque tudo isso não lhes é autorizado pelo Direito”.
O que a decisão do TJSC fez foi conferir uma interpretação extensiva às figuras do flagrante delito e da busca pessoal.
Deparamo-nos aqui com um problema de interpretação da lei. Já alertou Warat que “os métodos interpretativos podem ser indiscriminadamente utilizados apesar de o senso comum teórico dos juristas exigir sua compatibilidade com o tipo de problema ao qual se apliquem”.[2]
Por isso da necessidade de primeiro compreender o texto legal para só depois interpretá-lo, o que evitaria as decisões que visam adequar a norma ao caso concreto, quando é o caso que deve se adequar à norma.

Notas e Referências:
[1] Inclusive a FENEME já ingressou com a ADI 5156, em trâmite no STF.
[2] WARAT, LUIZ ALBERTO. Introdução Geral ao Direito: Interpretação da lei, temas para uma reformulação. Vol. 1. Porto Alegra: Fabris Editor, 1994, p. 90.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Diálogo com um Cristão sobre a redução da maioridade penal

Não sou cristão[1], mas respeito quem diz ser. Nesses dias que se aproximam da Páscoa, encontrei um amigo cristão que não via há muito tempo. Após nos situarmos sobre nossas vidas, acabamos falando sobre religião:
Cristão: Você continua não cristão?
Não Cristão: Sim, não achei motivos ainda para ser cristão. Até porque acho muito difícil ser um verdadeiro cristão, quase impossível. Mas, entenda, não sou ateu.
Cristão: Bom, então sua vida é um vazio sem fim, pois não crer em Cristo é ruim.
Não Cristão: Como eu, muitos outros não creem em Cristo, cultivam outra fé, tais como budismo, islamismo, taoísmo e nem por isso a vida deles é vazia. Esse seu comentário é preconceituoso. Eu poderia muito bem afirmar que você, sendo cristão, vive uma vida igual a minha.
Cristão: Eu? Uma vida igual a sua? Eu vou na igreja duas vezes por semana, pago o dízimo, trabalho muito e mantenho uma linda família, leio a bíblia diariamente e divulgo a palavra do Senhor. E você, o que faz?
Não Cristão: Eu também trabalho duro, em três turnos para dar conta da minha família, composta por minha esposa e dois filhos. Não frequento nenhuma igreja, mas faço minha oração para o Deus que acredito em silêncio. Não prego a palavra, pois acho que o exemplo é mais eficiente que o verbo. Não pago dízimo, pois não preciso de alguém me doutrinando. E quando preciso tirar algumas dúvidas, recorro a amigos com mais conhecimento que não me cobram nada para “falar da palavra”, pois eles não fazem disso uma profissão, como os teus doutrinadores. Mas te pergunto: Cristo, pelo pouco que sei, não disse que precisaríamos frequentar alguma igreja para falar com ele, não é mesmo? Se não me engano ele disse que a igreja é cada um de nós e que o encontraríamos até debaixo de uma pedra. Também falou, pelo que sei, que onde estiverem reunidas duas ou mais pessoas em seu nome, ele ali estará. Aqui apenas ouso a divergir, pois acho que ele também estará onde estiver uma pessoa apenas em seu nome. Ele não iria deixar de atender um pedido porque esse crente está solitário, não é mesmo?
Cristão: Poxa, por não crer em Cristo até que você sabe muito. Concordo, Cristo não disse que precisaríamos frequentar igreja ou templo. Mas isso é o que motiva a minha fé. Mas se você ora em casa, ótimo, porque vejo muitos que vão na igreja apenas por ir. E o dízimo é uma ajuda para os que trabalham em seu nome, uma opção.
Não Cristão: Bem, então nossas diferenças básicas até agora entre ser ou não ser um cristão residem em você frequentar uma igreja e pagar o dízimo e eu não fazer tais coisas. Mas, como você mesmo disse, isso não é uma condição para ser cristão, certo?
Cristão: Correto.
Não Cristão: E quanto a redução da maioridade penal? Você é a favor ou contra?
Cristão: A favor claro. Não podemos mais admitir que esses criminosos sejam beneficiados pela lei. Se cometerem um crime, devem pagar por isso. Estamos vivendo muita violência e muitos crimes são praticados por menores.
Não Cristão: Eu sou contra sabia? E vou te dizer o por quê. Penso que eles cometeram um erro sim, mas que esse erro é fruto de uma má orientação dos pais ou até mesmo de uma tendência deles próprios. Quem não erra nessa vida?
Cristão: Claro, todos erram, eu mesmo muitos erros cometo.
Não Cristão: Eu também cometo muitos erros, e até mesmo alguns crimes semanalmente. E com você não deve ser diferente.
Cristão: Não é não. Errar é humano.
Não Cristão: Então. Se todos nós erramos, e se um menor erra, porque devemos puni-lo ao invés de ajudá-lo?
Cristão: Você diz isso porque não foi vítima de um menor. Se eles votam porque não podem assumir pelo ato que cometem?
Não Cristão: Olha, acho que eles ainda não possuem uma formação psíquica adequada. Pesquisas apontam que apenas aos 21 anos há um completo amadurecimento psicológico. Mas independentemente disso, acho que eles merecem uma segunda chance e muita ajuda. Precisamos estender a mão para eles e não uma algema.
Cristão: Discordo. Lugar de criminoso é na cadeia.
Não Cristão: Mas eu e você também somos criminosos, façamos um exame de consciência. Quantos atos que são crimes praticamos? Muitos? Você acha que precisaria passar uma temporada preso para ser uma pessoa melhor? Ou seu filho, acha que ele precisaria ser preso caso viesse a cometer um crime?
Cristão: Humm. Acho que não!
Não Cristão: Bem, voltando as nossas diferenças, agora temos outra né. Além de eu não frequentar igreja e não pagar dízimo, sou contra a redução da maioridade penal e você é a favor. Temos, então, três diferenças, sendo que as duas primeiras concordamos que não são condições para alguém ser Cristão, correto?
Cristão: Sim.
Não Cristão: Então a diferença entre eu, não cristão, e você, cristão, é que eu sou contra a prisão de jovens e você é favorável. Sou contra porque penso que o perdão deve ser exercido sempre. Sou contra porque me coloco no lugar do outro e tento compreender a sua atitude, sabendo que, muitas vezes, não teve uma educação, lazer, cultura, família, infância adequadas. Penso que prendê-lo seria um ato de vingança. Também me coloco no lugar da vítima cristã e penso que o que ela queira não é jogar e esquecer este jovem num cárcere, mas fazer com que ele melhore, dando condições para isso. Te pergunto, se Cristo viesse na terra agora, quem você acha que ele apontaria como sendo um seguidor seu? Eu ou você?
Cristão: Refletindo, vejo que tudo o que você me disse é aquilo que Cristo pregou. Mas é impossível que você consiga ser assim, tão bom.
Não Cristão: Exato, impossível e por isso não sou cristão, pois não conseguiria seguir todos os ensinamentos dele. Mas minha posição faz com que eu, não cristão, seja mais cristão que você, que se diz cristão. Mesmo que não consiga ser assim tão bonzinho, acho que precisamos tentar, exercitar.
Cristão: Mas por onde você acha que devo começar, então?
Não Cristão: Posicionando-se pela não redução da maioridade penal. Com essa postura você estará exercitando muitas virtudes que o seu Cristo espera de um verdadeiro cristão.

Notas e Referências:
[1] O diálogo que segue é uma ficção, servindo para reflexão.

quinta-feira, 19 de março de 2015

O Direito Penal em análise: Uma abordagem a partir da Teoria Analítica de Carl Jung

Publicado no Empório do Direito
O presente estudo busca demonstrar que o Direito Penal apresenta-se ao coletivo com uma máscara (persona) que convém apenas para alguns setores da sociedade, procurando legitimar discursos dissimulados, simbólicos, ineficazes e maliciosamente interesseiros.
Pensa-se ser perfeitamente possível fazer uma (re) leitura do Direito Penal a partir da Teoria Analítica proposta por Jung[2]. Esta transdiciplinaridade, segundo Edgar Morin[3], objetiva gerar uma civilização que por força do diálogo intercultural se abre para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser.
E é procurando vencer este desafio que se buscou, de forma transdiciplinar, dialogar entre o Direito Penal e a Psicologia, com enfoque na Teoria Analítica, pressupondo que a partir da singularidade de cada ramo, poder-se-á aproximar-se da inteireza do objeto de estudo.
Por mais que a Teoria Analítica tenha aplicação primordial na área da Psicologia, as ideias e os conceitos propostos por Jung repercutem em outras áreas do saber. Para Hall[4] “é útil considerar os conceitos junguianos básicos em várias categorias”, o que da a certeza que a confluência entre estes dois ramos do saber é perfeitamente possível e, quiçá, necessário, a fim de melhor compreendermos determinados comportamentos coletivos que direta ou indiretamente influenciam a legislação penal.
Com este propósito é que serão abordados alguns aspectos (os quais repercutem mais intensamente na ciência jurídica) da Teoria Analítica, procurando identificar a presença ou não de algumas categorias junguianas (inconsciente coletivo, persona, sombra e self) no Direito Penal, bem como as consequências desta correlação.
DIALOGANDO COM JUNG: O Inconsciente Coletivo e os Arquétipos 
O Inconsciente Coletivo[5]
Antigamente o conceito de inconsciente limitava-se a designar o estado dos conteúdos reprimidos ou esquecidos. Quando Jung criou sua teoria, denominou de inconsciente coletivo “a camada mais profunda da psique” o qual “constitui-se como um ‘depósito’ de traços de memória herdados do passado ancestral do homem”[6].
Nas palavras do próprio Jung, inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal. Por não estarem os conteúdos do inconsciente coletivo na consciência é o que explica o fato de não termos os adquiridos individualmente, mas por meio da hereditariedade[7].
Jung[8] esclarece que “uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal” e assim tem-se o inconsciente pessoal que “repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inatas. Esta camada mais profunda é o que chamamos de inconsciente coletivo”.
O coletivo deve ser entendido como não sendo de natureza individual, pois é universal, ou seja, vivido por muitos, tem conteúdos próprios, revela-se o mesmo em toda parte e em todas as pessoas de uma mesma cultura, já que “não se desenvolve individualmente, mas é herdado”[9].
Para Jung, determinadas situações passam de geração a geração como se fossem verdades absolutas, sem que se saiba a origem e as razões de seu surgimento. Justamente por serem aceitas pelo humano no decorrer dos tempos é que se tornam predisposições latentes que virão a tona quando o indivíduo confronta-se com experiências reais.
Em Mednicoff[10] vê-se que “o homem nasce com predisposição para pensar, sentir, perceber e agir de maneiras específicas. O desenvolvimento e a expressão de suas predisposições, ou imagens latentes, dependem inteiramente das experiências vividas pelo indivíduo”.
Seria o inconsciente coletivo, então, aquelas ideias e conceitos preconcebidos pelo senso comum coletivo e que não comportam uma análise genética (de sua origem), pois são “verdades” (re) passadas de geração a geração sem que se entenda a motivação e a razão daquela “verdade”.
Deve-se distinguir o inconsciente pessoal do inconsciente coletivo. O pessoal é formado por conteúdos que foram, em certo momento, conscientes, enquanto os conteúdos do inconsciente coletivo “jamais foram conscientes no período de vida de um indivíduo, e acabam refletindo os processos arquetípicos”[11], o que significa dizer que mesmo não tendo sido conscientes, os conteúdos do inconsciente coletivo são repassados de geração a geração e se exteriorizam através de comportamentos, os quais refletem-se por meio dos arquétipos.
Quando pensamos em Deus logo nos vem a mente a imagem de uma figura masculina. Mas você já se questionou o porquê deste pensamento? Não se sabe nem mesmo se a Divindade tem forma humana, ou se ela constitui-se de luz, fonte de energia… Caso tenha forma humana (contornos de um corpo físico como o nosso, o que não se crê), terá a Divindade sexo? Será homem ou mulher?
Esta concepção que coletivamente temos de que Deus apresenta-se no gênero masculino serve como exemplo do que seria o inconsciente coletivo. Não se tem ideia ou a certeza de onde vem esta imagem que processamos cada vez que mentalizamos a figura de Deus, mas certamente foi criada por gerações pretéritas e repassada culturalmente.
Jung[12] apresenta outros exemplos de inconsciente coletivo, como no hábito que temos de enfeitar árvore de natal ou esconder os ovos de páscoa, comportamentos realizados pelo coletivo sem questionamentos, sem reflexões e sem saber o que tais costumes significam. Estes atos são realizados porque nossos antepassados assim faziam, os quais também herdaram pela tradição.
Importante a ressalva de Jung de que só se pode falar em um inconsciente na medida em que comprovarmos os seus conteúdos (a existência destes, como nos exemplos acima), já que uma experiência psíquica só é reconhecida pela presença de conteúdos capazes de ser conscientizados. E os conteúdos do inconsciente coletivo, que devem ser comprovados, são chamados por Jung de arquétipos, que veremos a seguir.
Arquétipos
O termo arquétipo (archetypus) já se fez presente nos escritos de Dionísio Areopagita[13], Irineu de Lyon[14]e entre outros escritores da antiguidade. Em Santo Agostinho a ideia de inconsciente coletivo já estava presente mesmo sem ter sido mencionada diretamente: “(…) ideias (….) que não são formadas, mas estão contidas na inteligência divina”[15].
Os arquétipos representam imagens arcaicas e universais que existiram desde os tempos mais remotos e são comumente encontrados no mito, no ensinamento esotérico e nos contos de fada. Explica Jung que os povos primitivos, quando associavam os elementos da natureza (sol, chuva, vento, fogo etc.) a um deus ou herói ou à trajetória de suas vidas, estavam demonstrando a figura do arquétipo, cujo símbolo[16] foi repassado sem a conscientização ou entendimento racional daquilo.
As imagens arquetípicas tem um sentido tão profundo que raramente questionamos seu sentido real.
Portanto, os conteúdos do inconsciente coletivo são chamados de arquétipos (que podemos entender como personalidades atuantes), que “indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar”[17].
O conceito de arquétipo só se aplica as representações coletivas que ainda não foram submetidas a qualquer elaboração consciente. O arquétipo difere da fórmula historicamente elaborada, pois esta já foi alçada ao nível consciente e repassada pelas gerações de forma racional.
Salienta Mednicoff[18] que o termo arquétipo frequentemente é mal compreendido, pois ele não expressa imagens ou motivos mitológicos definidos. Na realidade as imagens ou motivos mitológicos são apenas representações conscientes do arquétipo. Este tem uma tendência a formar representações que podem variar em detalhes, de povo para povo, de pessoa para pessoa, sem perder sua configuração original. Também é comum achar que os arquétipos representam imagens ou ideais inatas, quando eles verdadeiramente preexistem, já que são possibilidades herdadas.
Os arquétipos originam-se de uma constante repetição da mesma experiência, durante muitas gerações e são percebidos em comportamentos externos, especialmente naqueles que se concentram em torno de experiências básicas e universais da vida, como os nascimentos, os casamentos, a maternidade, a morte e a separação. Não são passíveis de materialização, mas de representação simbólica[19].
Jung pondera que há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdos, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação[20].
Por tal razão é que abordaremos apenas três arquétipos (o self, a sombra e a persona), os quais, pensa-se, possam correlacionar-se mais estreitamente com o Direito Penal.
self é o arquétipo da totalidade e designa o objeto a ser encontrado, é o “alvo da vida”. Jung representa o self na mandala, palavra sânscrita que significa círculo. Para Jung a mandala simboliza a totalidade, sendo que o centro do círculo equivaleria ao arquétipo central, ou self[21].
Como arquétipo, o self apresenta-se nos sonhos, mitos e contos de fada como uma personalidade superior, um rei, um salvador. Assim, o self representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra a sua vontade. Enfatiza Mednicoff[22] que o destino do ser humano é a evolução em todos os aspectos. Inevitavelmente, ele chegará à totalidade, à essência, à integridade e isto é um fato.
persona deriva da palavra grega “máscara” e representa o arquétipo da adaptação, é a máscara usada pelo indivíduo em resposta a sua necessidade de desenvolver características básicas de adaptação social[23]. É aquilo que o indivíduo quer que o outro veja nele, ou seja, é a forma como ele deseja ser visto pelo coletivo.
Afirmou Jung[24] que a persona é um “sistema de adaptação ou estilo de nossa relação com o mundo (…) é o que não se é realmente, mas sim aquilo que os outros e a própria pessoa acham que é”.
A persona é um facilitador na tarefa de se relacionar com o mundo coletivo exterior[25], pois o indivíduo se apresenta como lhe é conveniente. Por isso diz-se que a persona, quando desenvolvida de forma excessiva, pode produzir uma personalidade que preenche com precisão os papéis sociais, mas deixa a impressão de que não existe, “dentro”, uma pessoa real[26].
O vazio existencial que aplaca grande parte das pessoas que se aposentam é fruto do uso errado da persona apropriada ao trabalho ou à profissão, ou seja, enquanto exerciam seus papéis laborais, a máscara que usavam aparentava ao mundo coletivo uma pessoa comprometida com o trabalho e isso era visto com bons olhos pela sociedade, que o aceitava como alguém que estava dentro dos padrões de produtividade exigidos coletivamente. Contudo, com a aposentadoria, a máscara não mais lhe serve e aí sente o indivíduo um vazio, pois deixa de integrar a engrenagem produtiva. Em suma, sente-se inútil e incompetente, já que não mais produz. Segundo Hall, faltou “ampliar sua identidade”[27].
Por fim a sombra para Jung[28] é “a coisa que uma pessoa não tem desejo de ser”. O indivíduo, ao construir a sua persona, acaba inconscientemente por selecionar aquilo que deve ou não ser visto/percebido pelo mundo coletivo exterior. São as tendências, os desejos, as memórias e experiências rejeitadas pela pessoa por ser incompatível com a persona, e contrária aos padrões e ideais sociais. Quanto mais forte a persona, e quanto mais houver identificação com ela, mais negamos partes de nós mesmos, e as reprimimos da consciência[29].
Equivocadamente afirma-se que a sombra é o lado ruim, sombrio da pessoa e por isso deve ser reprimido[30]. A sombra pode conter tanto aspectos negativos (tudo aquilo que consideramos inferior em nossa personalidade[31], ou positivos (o que negligenciamos e não permitimos seja desenvolvido em nós mesmos, podendo ser positivo à nossa evolução).
Veja um exemplo apresentado por Mednicoff[32]:
Há pessoas que possuem a crença de que dinheiro só traz infelicidade e, assim, acabam reprimindo sua potencialidade para os negócios, por exemplo, por terem medo de ser prósperos. Eles acabam armazenando na sombra todo o potencial de desenvolvimento nessa área, ou seja, um lado bom é reprimido porque inconscientemente ela aceita uma crença como verdade.
A busca pelo conhecimento da sombra é o que faz do indivíduo um ser mais consciente de suas limitações e potencialidade. Por isso é importante que o indivíduo busque conhecer o que reprime e entre em “conflito” com esse conteúdo negligenciado para que se apresente ao social como realmente é, na inteireza do seu ser.
Porém, pondera Mednicoff[33] que “normalmente reconhecer a sombra significa arrumar encrenca e colocar em questionamento tudo o que foi vivido até aquele momento”. Trata-se, segundo a autora, de um mergulho profundo no desconhecido, é se contestar e se reformular. Alerta, ainda, que “os conteúdos sombrios não se esgotam” e não são eliminados, mas são acessados conforme as escolhas do momento, por isso sempre que houver processo de escolha consciente, haverá, também, o lado negligenciado, ou não escolhido, o que poderia ter sido vivido e não foi.
E porque a escolha destes três arquétipos para a reflexão em questão? Porque entendemos que o Direito Penal apresenta-se ao coletivo com uma máscara (persona) que convém a alguns setores da sociedade tão somente, e procura legitimar discursos dissimulados, simbólicos, ineficazes e maliciosamente interesseiros.
A escolha por esta persona do Direito Penal, obrigatoriamente fez com que outra aparência (outro discurso, outra ideia, outra função) fosse negligenciada, estando na sombra. E a busca pelo conhecimento da sombra, como já dito, é o que autoriza o conhecimento integral, o autoconhecimento. Pensamos que buscando conhecer o que foi negligenciado pelo discurso que moldou a máscara atual do Direito Penal, podemos perceber se esta persona deve/pode ser modificada para se chegar à função/natureza verdadeira do Direito Penal, ao self.
Para a Teoria Analítica este processo se faz por meio da individuação, onde a pessoa vai se descobrindo, se conhecendo, retirando suas máscaras, retirando as projeções lançadas no mundo externo, e integrando-as de volta a si mesmo. Esse é um processo difícil, doloroso, mas é com ele que alcançaremos a totalidade psíquica, o self, alerta Mednicoff[34].
A proposta, então, é de que por meio da individuação – ou do questionamento dos discursos – possamos retirar a atual persona do Direito Penal que se projeta ao coletivo e muitas vezes se instala no inconsciente coletivo, elaborando outra que seja mais condizente com a proposta inicial do Direito Penal dentro de um Estado Democrático de Direito.
DIREITO PENAL EM ESTADO DE “ANÁLISE”
O Direito Penal está impregnado por “verdades” ditas coletivamente, as quais, não restam dúvidas, constituem-se num exemplo de inconsciente coletivo.
A noção repassada sobre a função do Direito Penal está de tal forma enraizada no senso comum que é difícil modificá-la.
Já alertou Salo de Carvalho[35] que a ausência de debate tem possibilitado o nascimento de ideias que estão sendo divulgadas como verdades oficiais, únicas. Invariavelmente reproduzidas em linguagem coloquial e despidas de cerimônia, estas verdades são servidas em manuais que reproduzem um conhecimento epidérmico e que deflagra a crise do ensino jurídico nacional. O pior, no entanto, é que tais verdades são consumidas pela massa com uma naturalidade que causa temor.
Explica Jung[36] que “quando um grupo é muito grande cria-se um tipo de alma animal coletiva. Por esse motivo a moral de grandes organizações é sempre duvidosa. É inevitável que a psicologia de um amontoado de pessoas desça ao nível da plebe[37]”.
O Direito Penal é visto pela maioria das pessoas – e alguns “cultos” operadores jurídicos/legislativos – como um instrumento capaz de garantir a paz social e a segurança pública. Esta máscara do direito penal é falsa, simbólica e ineficaz.
 O discurso de que o Direito Penal garante a paz social e a segurança pública é falacioso e muitas vezes malicioso, uma vez que esconde as reais intenções daqueles que o professam, qual seja a manutenção dostatus quo.
O Direito Penal dentro do Estado Moderno surge com a finalidade de proteger os direitos dos cidadãos frente ao poder Estatal. É muito mais um limitador do jus puniendi que um garantidor da paz social.
Pensar o Direito Penal como garantidor da paz pública e como instrumento eficaz de prevenção do crime é supor que grande parte dos delitos ocorridos sejam investigados e punidos, o que efetivamente não ocorre. Zaffaroni[38] argumenta que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida naturalmente aos setores vulneráveis, ou seja, espera-se que o Direito Penal atue naquelas situações previamente selecionadas pelos órgãos executivos do sistema penal.
O exercício de poder criminalizante programado (intenção de punir) é muito maior que a capacidade operativa dos órgãos, fazendo com que o Direito Penal seja direcionado a conter certos grupos sociais ao invés do próprio delito.
Historicamente temos exemplos de que não é com o aumento da pena ou com o aumento da criminalização de condutas que iremos diminuir a violência. A Lei dos Crimes Hediondos foi criada com a finalidade de punir mais severamente alguns crimes considerados de extrema gravidade, bem como diminuir garantias e direitos dos autores destes crimes. O que se viu após a promulgação desta lei não foi a diminuição dos crimes denominados hediondos ou os seus equiparados, mas sim o aumento deles, o que indica que esta medida é ineficaz.
A alteração da lei de combate ao tráfico de drogas (Lei nº 11.343/06) trouxe um considerável aumento das penas. Porém, não há evidência alguma de que após o endurecimento da pena abstrata houve diminuição deste crime, como também não há relação entre a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ao condenado por crime de tráfico que receba a diminuição do § 4º do artigo 33 da Lei de Drogas, com o aumento da prática criminosa, porque a existência do ilícito não está ligada a punição maior ou menor do ato.
A Lei Maria da Penha também não causou reflexo na diminuição dos crimes praticados contra a mulher. Estudo do Ipea avaliou o impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões, por meio de estudo de séries temporais. Constatou-se que não houve impacto, ou seja, não houve redução das taxas anuais de mortalidade, comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei. As taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram 5,28 no período 2001-2006 (antes) e 5,22 em 2007-2011 (depois). Observou-se sutil decréscimo da taxa no ano 2007, imediatamente após a vigência da Lei, e, nos últimos anos, o retorno desses valores aos patamares registrados no início do período[39].
             Façamos um exercício rápido para demonstrar o que estamos dizendo: o que lhe da garantia (se é que algo possa nos garantir) de não ser vítima de um crime de roubo? Saber que o Direito Penal pune o crime com uma pena de 4 a 10 anos? Não, verdadeiramente não é isso que nos garante, justamente porque o Direito Penal não tem por função nos dar esta garantia e porque ele é ineficaz neste fronte.
Outro raciocínio que pode ser feito é o seguinte: o que lhe impede de praticar um ato criminoso, de não furtar, roubar ou matar alguém? É o fato desta conduta ser considerada crime ou é a sua postura perante a vida que lhe impede de praticar tal ato? Se a resposta for “porque está previsto como crime”, então faça outra indagação: você cometeria furto contra a sua mãe, já que este ato está isento de pena (artigo 182, inciso II, CP)? Ou você cometeria adultério, já que esta conduta não é crime? Neste caso a resposta vem geralmente negativa e o argumento é que o ato não é praticado porque não faz parte de sua “educação”.
O discurso de que não se pratica referido ato porque está previsto como crime é falso, o que torna esta persona do Direito Penal também falsa.
Este discurso inapropriado que procura correlacionar o Direito Penal como instrumento capaz de garantir a paz social e a segurança pública é fruto das criações coletivas, e estas, sejam elas descobertas ou invenções, “nascem sobretudo de um grande medo ou de uma grande esperança, difundidos no inconsciente popular”[40].
Já afirmou Jung que “o indivíduo na multidão torna-se facilmente uma vítima de sua sugestionabilidade”[41]e Sartre[42], com precisão, salienta que enquanto imerso na situação histórica, o homem sequer chega a conceber as deficiências e faltas de uma organização política ou econômica determinada, não porque ‘está acostumado’, como tolamente se diz, mas porque apreende-se em sua plenitude de ser e nem mesmo é capaz de imaginar que possa ser de outro modo.
É perfeitamente compreensível que o coletivo necessite de garantias para diminuir o medo, já que até o advento da sociedade industrial, a cidade era o local protegido, no qual as pessoas se enclausuravam a fim de se defender da aspereza e da violência dos campos. Durante a sociedade industrial, essa relação foi, aos poucos, invertendo-se, e no imaginário coletivo a cidade tornou-se um lugar de movimento frenético, senão de vícios e de violência, onde os cidadãos sonham com uma serena tranquilidade campestre e a paz e o silêncio do sítio, da casa de praia ou da casa na serra, para onde correm nos fins de semana[43].
Porém não se pode aceitar que o Estado satisfaça esta demanda através do Direito Penal e, principalmente, por meio da criminalização e do aumento de pena. Como diz Jung[44], é verdade que exigimos tudo do Estado, mas não percebemos que ele é constituído pelos mesmos indivíduos que fazem tais exigências.
 Esta persona deve ser substituída, vez que não representa a real função do Direito Penal. Para se apresentar com esta faceta ao social, o sistema penal aumenta o número de violência a que se propõe diminuir, através da ocorrência de corrupção interna do sistema penal, das mortes violentas, das privações de liberdades ilegais, das extorsões, torturas e demais ilegalidades praticadas pelas agências de controle penal.
 Parece paradoxal, mas o Direito Penal, com o discurso de paz social e segurança pública, aumenta a violência institucionalizada, a qual se costuma aceitar como “preferível à uma suposta eclosão do delito de iniciativa privada e da justiça pelas próprias mãos resultante da ineficácia do sistema penal”[45]. Assegura Zaffaroni que o sistema penal é o maior obstáculo à paz social e o principal instrumento de dissolução comunitário[46].
O sistema deteriora não apenas o apenado, mas também seus operadores, como os agentes judiciais, os agentes policiais, além de deteriorar o social, através da falsa sensação de segurança e da criminalização máxima[47].
Vivemos em uma cultura do medo, onde a mídia tem um papel constitutivo que nos é vendida diariamente, seja através de programas sensacionalistas que investem no conteúdo violento como forma de aumentar a audiência, mostrar a impunidade e exigir o endurecimento das penas e o aumento da criminalização, seja através de sofistas jurídicos embutidos na função de comentaristas e representantes das “vítimas em potencial”, que se utilizam de um discurso paralogista para induzir em erro a grande massa popular, seja através das séries policiais, todas importadas, as quais “glorificam o violento, o esperto e o que aniquila o ‘mau’, onde a solução do conflito através da supressão do ‘mau’ é o modelo que se introjeta nos planos psíquicos mais profundos, pois são recebidos em etapas muitos precoces da visa psíquica das pessoas”[48], no caso as crianças.
Essa sensação de violência faz com que cobremos respostas do Estado, respostas estas que invariavelmente vem em forma de repressão penal.
Esquecemos que antes do direito penal ser aplicado, outros setores deveriam exercer este controle, como a família, a escola[49]. Somente quando estas instituições falharem é que o Estado deveria entrar em cena através dos vários ramos de repressão, sendo o penal o último a ser aplicado. Antes caberia ao direito civil, ao direito administrativo, ao direito tributário, ao direito trabalhista esboçar uma reação.
Portanto, o direito penal é a última razão de ser, o último ramo repressivo estatal a ser usado. E o que vemos atualmente senão o direito penal sendo a primeira resposta do Estado?
Estávamos em 2014, segundo informações extraídas do Conselho Nacional de Justiça[50], com mais de 563 mil presos, o que coloca o Brasil no 4º lugar entre os países que mais aprisionam, perdendo apenas para os EUA (cerca de 2,2 milhões), China (1,7 milhões) e Rússia (676 mil). O Brasil deixa a Índia (com 385 mil presos) muito atrás, pais este que conta com mais de um bilhão de habitantes.
Não se pode transformar um Estado Democrático em um Estado Penal, onde se tenta resolver tudo pelo Direito Penal. O reflexo disso é o aumento de condenações, prisões lotadas e a violência aumentando, o que nos da a sensação de impunidade.
Outra máscara que veste o Direito Penal é de que o aumento da criminalização (de tipos penais) e o aumento da pena é a solução para a diminuição da criminalidade e a pacificação social. Explica Zaffaroni[51] que o legislativo ao inflacionar a criminalização (tipificação) possibilita o aumento do arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal. Para tanto, exerce um constante poder de vigilância controladora sobre toda a sociedade e, em especial, sobre os que supõe ser, real ou potencialmente, daninhos para a hierarquia social.
Devemos combater esta persona do Direito Penal que se projeta ao social como sendo um instrumento eficiente na prevenção do crime, que ressocializa[52] o infrator – muitos que sequer foram socializados – e que deve ser o primeiro instrumento estatal de controle a ser aplicado em caso de conflito.
O Direito Penal sempre elegeu seus inimigos e a estes tratou de controlar e punir com mais intensidade. Foi assim no discurso teocrático, em nome do qual matavam os dissidentes internos, os colonizados rebeldes e as mulheres desordeiras; no modelo inquisitorial onde os inimigos eram as bruxas, os hereges e os reformistas; fora da Europa o poder colonialista eliminou a maior parte da população americana (índios); os negros africanos, elevados a condição de escravos e, portanto, inimigos pelos comerciantes ingleses, franceses e holandeses, também foram vítimas deste discurso; a Revolução Industrial, apesar de diminuir o controle penal diferenciado, tinha como inimigos os indesejáveis (pequenos ladrões, prostitutas, homossexuais, bêbados, vagabundos, jogadores etc.) que não se enquadravam ou se rebelavam contra a ordem social estabelecida, que passaram a ser controlados através do encarceramento[53].
Atribui-se a Rafael Garofalo a tentativa mais grosseira de sustentar que o controle penal deveria ser direcionado aos “inimigos naturais da sociedade”, os quais deveriam ser eliminados, equivalendo-se a seleção natural de Darwin[54].
Franz Von Liszt[55], positivista alemão que influenciou a lei nazista de 1933 sobre delinquência habitual, declarava guerra a esta espécie de delinquência e ao que ele denominava de má vida. Segundo ele, os casos de enfermidade social que costumam ser designados sinteticamente pela denominação genérica de proletariado, mendigos e vagabundos, alcoólatras e pessoas de ambos os sexos que exercem a prostituição, vigaristas e pessoas do submundo no mais amplo sentido da palavra; degenerados espirituais e corporais. Todos eles formam o exército dos inimigos por princípio da ordem social, em cujo estado-maior figura o delinquente habitual.
É bastante claro, então, que o Direito Penal nunca foi utilizado para garantir a paz social, pelo contrário, foi sim instrumento de controle social e de punição selecionada.
Este controle, exercido pelo colonialismo (revolução mercantil), seguido pelo neocolonialismo (revolução industrial) e pela globalização (revolução tecnológica), teve como característica comum o poder de consumo. Em outras palavras, a lei de consumo é quem determina quem controla e quem é controlado.
Válida é a leitura de Domenico de Masi[56]:
Para a massa de cidadãos fala-se em tempo livre só como ocasião de consumo, útil para a economia, algumas vezes perigoso para a inflação e ameaçador para a ordem pública; portanto, um segmento de vida coletiva a manter sob controle, a acalmar ou a incentivar, segundo as exigências mercantis; a transformar em objeto de manipulação por meio de festa e publicidade, nunca a cultivar com uma ação pedagógica precisa.
Isso mostra como a sociedade capitalista entende o social, apenas como uma massa de consumidores, onde o interesse não é voltado à pessoa, mas sim ao lucro. O problema é quando se utiliza o direito penal como um instrumento a eliminar aqueles que possam impedir ou atrapalhar este “lucro”.
Propõe-se fazer no direito penal a individuação, processo através do qual a “pessoa” (no caso o sistema penal) vai se descobrindo, se conhecendo, retirando suas máscaras, suas projeções lançadas no mundo externo e integrando-se de volta a si mesmo. É através da individuação que se alcança a totalidade psíquica, o self[57], ou no caso do direito penal, é redescobrir a real função do sistema, deixando de utilizá-lo para satisfazer interesses de classes específicas ou interesses que não se identificam com o direito penal.
É mais do que necessário retirarmos a máscara divulgada e assimilada pelo inconsciente coletivo de que o direito penal é o ramo repressivo adequado e eficaz à garantir a pacífica e harmônica convivência social. Mister que se apresente a verdadeira face do direito penal, que se diga a que ele veio e qual é a sua função. Onde o direito penal é realmente eficaz.
O Direito Penal tem uma função muito mais eficaz enquanto limitador do jus puniendi que garantidor da paz social. Através do princípio da legalidade todos os cidadãos, indistintamente, tem a garantia de que determinada conduta somente será punida se estiver previamente prevista em lei como crime.
O Direito Penal é uma garantia de que a resposta ao crime deva ser dada por meio do Estado. Não é possível imaginar uma sociedade sem o direito penal, porém é perfeitamente possível reestruturar a sua atuação “de maneira que a intervenção deste órgão se torne menos violenta do que outras formas ou modelos de decisão de conflitos efetivamente disponíveis”[58].
Portanto, enfrentemos este discurso minimalista e simbólico; procuremos observar criticamente o movimento penalizador do Estado, o aumento da criminalização e da punição abstrata, identificando o que efetivamente há por detrás do aumento de atuação do Direito Penal.
Quanto mais penal se torna o Estado, menos social ele é.

Notas e Referências
BRASIL. Conselho Nacional De Justiça. Disponível emhttp://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf.
CARVALHO, Salo de. WUNDERLICH, Alexandre. Diálogos sobre a justiça dialogal: Teses e Antíteses sobre os Processos de Informalização e Privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002.
DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
HALL, J. A. Jung e a interpretação dos sonhos. Manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1997.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
JUNIOR, Airto Chaves; OLDONI, Fabiano. Para que(m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2014.
RODRIGUES, Anabela Miranda. Consensualismo e prisão, disponível em http://www.gddc.pt/actividade-editorial/pdfs-publicacoes/7980-c.pdf.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 10 ed., Petrópolis: Vozes, 2001.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001.
___________________. O inimigo no Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[2] Carl Gustav Jung foi um psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, falecido em 1961.
[3] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 105.
[4] HALL, J. A. Jung e a interpretação dos sonhos. Manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 13.
[5] Inicialmente Jung utilizou-se do termo Inconsciente Coletivo, que posteriormente foi substituído pela expressão “psique objetiva”. Porém ainda hoje o termo mais utilizado e conhecido continua sendo inconsciente coletivo, razão pela qual o será adotado neste trabalho.
[6] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 59.
[7] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 51.
[8] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 12.
[9] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 52.
[10] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 61. A autora apresenta um exemplo bastante simples do que seria o inconsciente coletivo e que pode nos ajudar na compreensão: “Um exemplo seria o medo de barata que uma pessoa tem. Jung acreditava que existia uma herança entre as gerações, em que, por exemplo, o medo de barata era aprendido por uma geração e passado para as seguintes, sem entender de fato a razão do medo, apenas um sentido irracional” (p. 60).
[11] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 60.
[12] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 21.
[13] Filósofo ateniense.
[14] Padre e teólogo, escreveu “Contra Heresias” (Adversus Haereses) em 180 d.C.
[15] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 13.
[16] Jung define como símbolo o conteúdo inconsciente apenas pressentido, mas ainda desconhecido e comoalegoria o conteúdo consciente. O arquétipo seria um símbolo, pois ainda em estado de inconsciência. Passaria a ser uma alegoria quando determinado fato fosse apreendido pela consciência, ou seja, o indivíduo já refletiu a respeito e compreendeu o porque de tal fato, podendo até repassá-lo a uma geração futura, através da tradição, contudo não representa mais a figura arquetípica.
[17] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 51.
[18] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, pgs. 62/63.
[19] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 64.
[20] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 57.
[21] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 79.
[22] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 81.
[23] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 66.
[24] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 126.
[25] HALL, J. A. Jung e a interpretação dos sonhos. Manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 23. O autor apresenta um exemplo de quando os papéis da persona se ajustam bem ao indivíduo: “O médico ao vestir o avental branco e ao ‘vestir’ psicologicamente a persona da profissão médica está mais facilmente apto a realizar os exames necessários (e potencialmente embaraçosos) do funcionamento corporal do paciente. A persona inversa, a do paciente, é uma persona notoriamente difícil de os médicos assumirem quando eles próprios estão doentes” (p. 24).
[26] HALL, J. A. Jung e a interpretação dos sonhos. Manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 24.
[27] HALL, J. A. Jung e a interpretação dos sonhos. Manual de teoria e prática. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 25.
[28] Citado por MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 73.
[29] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 74.
[30] A ideia da palavra sombra como algo negativo talvez possa indicar um exemplo do que seja o inconsciente coletivo, uma vez que este sentido da palavra é o primeiro que nos vem à mente quando a pronunciamos/pensamos/ouvimos, sem ao menos refletirmos a respeito. A associação do termo sombra com algo negativo nos foi repassada pelas gerações pretéritas e certamente tem ligação com o sagrado, onde a Divindade é representada pela luz e a figura arquetípica do “diabo” pela sombra.
[31] Ressalta-se que a noção de bom ou ruim é individual, portanto quando se diz que a sombra é tudo aquilo que a pessoa entende ser negativo, está-se referindo à visão individual daquela pessoa, pois aquilo que ela considera negativo pode ser algo positivo para muitas outras pessoas.
[32] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 75.
[33] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 77.
[34] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 80.
[35] CARVALHO, Salo de. WUNDERLICH, Alexandre. Diálogos sobre a justiça dialogal: Teses e Antíteses sobre os Processos de Informalização e Privatização da Justiça Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2002, p. vii.
[36] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 129.
[37] Penso que o termo “plebe” não deve ser entendido como aqueles que figuram nas camadas sociais menos privilegiadas financeira ou economicamente, mas sim aqueles que não possuem um dicernimento claro sobre determinado fato.
[38] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 31.
[40] DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 192.
[41] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 129.
[42] SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 10 ed., Petrópolis: Vozes, 2001, p. 538.
[43] DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 327.
[44] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 228.
[45] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 39.
[46] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 145 e 175.
[47] Sobre os efeitos da deteriorização nos agentes judiciais e policiais ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 137 a 142.
[48] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 128.
[49] Sobre as deficiências destes segmentos de controle social informal e seus efeitos negativos, ver JUNIOR, Airto Chaves; OLDONI, Fabiano. Para que (m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2014.
[50] Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf, consultado em 15/03/2015.
[51] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 27.
[52] Para Anabela Miranda Rodrigues esse processo só terá alguma eficácia se houver, por parte do recluso, um consentimento em ser socializado. Não há como impor regras e valores ao recluso. In Consensualismo e prisão, disponível em http://www.gddc.pt/actividade-editorial/pdfs-publicacoes/7980-c.pdf, acesso em 15 de março de 2015.
[53] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 33/44.
[54] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 93.
[55] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 95.
[56] DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 623.
[57] MEDNICOFF, Elizabeth. Dossiê Jung. São Paulo: Universo dos Livros, 2008, p. 80.
[58] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed. Rio de Janeiro: Revan,  2001, p. 107.