terça-feira, 30 de junho de 2015

Quando o saber ou o viver incomodam

Publicado originalmente no justificando.com.br

Quando não sei, não assumo responsabilidades e tomo decisões sem me importar “muito” se elas são corretas ou não. Quando adquiro o conhecimento sobre algo, minhas posições passam a ter um significado maior para mim e para os outros. A reflexão passa a fazer parte da minha decisão e os efeitos do ato passam a ser muito mais importantes que as causas.
Quando não vivencio determinada situação, não tenho condições de compreendê-la adequadamente. Meu raciocínio sobre ela é emprestado, e quem me empresta pode ser aquele que a viveu, ou terceiros que, portanto, estão na mesma condição que eu.
Assim, para dizer que determinado ato é absurdo (correto ou errado), a consciência tem necessidade de estar viva[1], e esta vivacidade se adquire com o saber e o viver.
Sem isso “conhecemos” a partir do que a massa, esse buraco negro em que o social se precipita, nos diz, justo ela que é opaca, nebulosa, cuja densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso.[2]
As histórias abaixo, que povoam o cotidiano, são exemplos tímidos, mas fiéis, de como nossa impressão sobre algo pode mudar, a partir do momento em que olhamos o fato com a experiência do saber e da vivência.
1) Sou a Ana e quando era pequena achava engraçadas as histórias que meu tio contava sobre suas aventuras alcoólicas. Bebia, brigava, dormia, vomitava, ria, acordava e tudo estava certo. Muitas risadas dei ouvindo ele contar e imitar suas passagens, até que uma noite o vi chegando em casa, embriagado, e, por uma discussão qualquer, agrediu severamente sua mulher, minha tia. A partir de então não mais achei engraçado suas histórias. Hoje sei que esses contos reais escondem muita violência e ruptura familiar. Não é engraçado, mas ainda muito se ri disso.
2) Meu nome é Charles e sempre achei normal a infidelidade masculina. Meu pai traiu muito, sempre aceitei, mas quando soube que minha mãe havia feito isso, não gostei, afinal ela não podia. Vivenciei algo diferente e passei a perceber que a dor que ela sentia quando meu pai a traia era a mesma que meu pai sentiu quando ela traiu. E a dor dos dois passou a ser a mesma dor para mim. Não houve mais distinção.
3) Sou Jonas e nunca fui um aluno aplicado, sempre estudava de véspera e colava em todas as provas. Era, como dizem hoje, “ninja” na arte da cola. Por mais que meus pais me cobrassem, nunca dei importância para o estudo. Fiz uma faculdade “meia boca” e hoje tenho um emprego bom, mais por sorte que por merecimento. Pensei que fui esperto até que meu filho começou a frequentar a escola. Malandro também, não estudava. A cola era sua maior aliada. Lembrei de mim. Não gostei do que lembrei. Vi-me ali. Não gostei do que vi. Foi uma luta para mudar minha opinião sobre o “ser esperto”, mas hoje sinto que agir assim não levaria a nada. Precisou meu filho mostrar-me isso. Não bastaram os sermões que levei, foi um “sentir na pele” que me fez mudar o pensar e o agir. Hoje faço uma pós-graduação e estudo como nunca estudei na vida.
4) Meu nome é Alan, tenho muitos amigos no whatsapp e seguidamente recebia vídeos em que o namorado gravava a relação com a namorada e, depois, com o fim do namoro, os “vazou” na net. As meninas, algumas conhecia, mas a maioria não tinha a mínima ideia de quem eram. Olhava os vídeos e encaminhava para outros grupos e amigos. Fiz isso muitas vezes. Tudo isso era muito normal. Não sei e nem me importava a consequência disso tudo para a menina filmada. Bem, até que num dia desses recebi um vídeo onde um casal mantinha relação sexual. A menina do vídeo era minha irmã, de 19 anos. O rapaz, seu ex-namorado, desejo até hoje estrangular por ter vazado o vídeo. Dessa vez, não tive coragem de passar adiante. Foi aí que me lembrei de todos os vídeos que já havia repassado. Senti-me muito mal. Agora quando recebo vídeos assim, não mais os encaminho, quebro a corrente.
5) Sou o pastor Vinícius e me orgulho de ter sido criado numa família temente à Deus. Cresci dentro da casa do Pai e pregava o evangelho desde muito cedo. Lembro que me foi ensinado que a homossexualidade era uma doença e casamento homossexual um ato indigno e contrário aos ensinamentos bíblicos. Tive alguns amigos homossexuais, mas fui me afastando deles pela imposição dos meus pais e pelas minhas próprias convicções. Cresci e me tornei pastor. Sou esposo e pai. Amo o que faço e sinto que consigo ajudar muitas pessoas. Tenho um filho, Carlos, de 17 anos. Descobri ano passado que ele é gay. No início não aceitei, levei-o ao médico, ao psicólogo, psiquiatra, mas isso não o fez mudar (só depois entendi que não é uma doença). Ele frequenta a minha igreja e é uma pessoa maravilhosa. Professa a fé cristã com muita sabedoria. Mas, é gay. Mas, é meu filho. Hoje, após muita reflexão e ajuda, vejo que ele não deixou de ser meu filho e nem de ser uma ótima pessoa só porque tem outra orientação sexual. Ele me ensinou a entender que essa condição não o faz menor. Hoje, e somente porque eu vivi isso, entendo e respeito a homossexualidade. Continuo pastor, na mesma igreja, a qual abraçou não só meu filho, mas também o seu namorado. Eles irão se casar.
6) Estudo odontologia, venho de família boa, onde nunca me faltou nada. Meu nome é Karen, sou uma pessoa correta, estudiosa e feliz. Não tenho reclamações a fazer, apenas uma observação sobre algo que ocorreu há 3 anos atrás. Lembro que, na época, o Brasil reduziu a maioridade penal para 16 anos. Achei essa decisão correta. Até me manifestei em redes sociais favoravelmente a isso. Meus motivos para apoiar? Não sei direito. Aliás, apoiei porque todos queriam, e pensava que isso era importante para diminuir os crimes que esses menores praticavam. Se li alguma coisa a respeito na época? Não, apenas noticiário. Meus estudos nunca foram nessa área das humanas. Interessava-me saber a estrutura facial e tudo o que envolvia a dentição. Para mim, na época, a cárie e o flúor eram mais importantes que o ser humano. Hoje? Bem, hoje penso diferente. Por quê? Porque meu primo de 16 anos está preso. Estava vendendo droga na escola. Logo ele que vi crescer. Educação boa. Teve tudo. Quis vender para poder comprar a droga que usa. Está preso e vai ficar muito tempo. Minha família acabou. Na época, achava que apenas os menores pobres, moradores de rua ou aqueles que praticam crimes violentos iriam presos. Nunca imaginei que um familiar meu fosse preso. Hoje eu sei que meu primo precisa de muitas coisas para mudar, mas certamente não precisa estar preso. Acho que foi um equívoco reduzir a idade penal.
A pergunta que fica é: o que mudou? O fato ou a percepção sobre ele?
Com Lacan[3] é possível explicar que o real, mesmo com toda a perturbação que receba, estará sempre no seu lugar. O real leva o simbólico colado na sola, sem conhecer nada que possa exilá-lo disso. Só o simbólico pode ser mudado de lugar e, portanto, ser dito que o mesmo está a faltar.
Na paralaxe de Zizek[4] é possível compreender a mudança de posição. O objeto continua o mesmo, no mesmo lugar (real), mas o observador é quem muda de lugar e passa a “olhar” o objeto a partir de um ângulo diferente, atribuindo-lhe um sentido diverso do inicial, ancorado em sua “nova” simbologia sobre o fato, que é adquirido, nos exemplos dados, a partir da experienciação fática e teórica individual.


REFERÊNCIAS

[1] CAMUS, Albert. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 16.
[2] BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: O fim do social e o surgimento das massas Brasília: Editora Brasiliense, 1985, p. 6.
[3] LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 28.
[4] ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

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