quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Não sejamos ingênuos, pois de cândido eles não têm nada!

Artigo originalmente publicado no justificando (link)
Por Fabiano Oldoni e Mayara Cristina F. Oldoni
Cândido, romance escrito em 1758 por Voltaire, retrata um protagonista otimista, com certa incapacidade de comprometer-se com suas ações, sempre vislumbrando e garantindo-se na crença de um futuro promissor.
O personagem Cândido carrega no próprio nome o sentido de puro e inocente, desprovido de culpa, ingênuo. Recusa-se a encarar o mundo onde o mal muitas vezes prevalece sobre o bem (em virtude dos seus habitantes, que fazem desse mundo o que ele é). É um confiante na infalibilidade do destino, crente na certeza do melhor.
Para sustentar esta ideia de mundo Cândido agarra-se ao mestre Pangloss que como seu “guru” diz que o mundo é uma perfeição intocável, cada fato sendo sempre regido pela Providência Divina.
Voltaire escrevia contra a verdade de uma crença totalitária e as certezas trazidas pelas tradições. Acreditava que o verdadeiro aprendizado se dava através da valorização das diferenças culturais e costumes. Para ele todo conhecimento e todas as certezas devem ser examinadas com olhar de quem duvida e questionadas pela experiência e pela realidade.
Em Cândido, Voltaire nos convida a pensar onde nossas atitudes como homem bom, puro que somos, podem chegar? Quais os limites que devemos observar? Como nos comprometemos com aquilo que acreditamos?
Isso nos remete à reflexão de como observamos o que não nos “representa” enquanto grupo, família, hábitos, crenças, enfim, como vejo e nomeio este Outro que é tão igual, tão falível quanto Eu, mas que em determinados momentos coloco tão distante, vendo-o tão cruel.
E quantos de nós, agindo como Cândido, nos “apegamos” aos mestres que ditam o fazer, o pensar e o por vir? Quantas vezes buscamos “alguém” que nos garanta a tara de dizer que tudo está bem quando na verdade está mal?
O senso comum teórico[1] há muito reina entre nós. No campo do processo penal estamos vencendo batalhas diárias para superar alguns ranços trazidos pela “doutrina majoritária”, como por exemplo: a verdade real, enquanto engodo e artimanha para autorizar o juiz a produzir provas de ofício, quebrando a imparcialidade e se aproximando do sistema inquisitivo; o in dubio pro societate, sem previsão constitucional e não suportando um confronto com o princípio da presunção da inocência; o artigo 28 do CPP, que escancara o juiz acusador, numa afronta risível ao artigo 129 inciso I da CF; a não aplicação do contraditório e ampla defesa na fase investigatória; a desnecessidade de fundamentar a decisão que recebe a denúncia; a aplicação da Teoria Geral do Processo para o processo penal, com todos os problemas que isso tem causado, deixando de lado a necessidade de se criar categorias próprias ao processo penal.
No direito penal temos o discurso punitivista, de lei e ordem, encarcerando a pobreza e criminalizando o cotidiano, numa distorção da real função do direito penal surgido com o Estado Moderno, como limitador do poder punitivo estatal.[2]
Isso ainda é ensinado em muitos cursos de direito. Por isso há muita decepção com o Direito Penal e o Processo Penal. Mas as decepções nos fazem crescer, amadurecer, tirar as vendas das verdades que carregamos e encarar a realidade que nos compete e nos convida ao engajamento.
As decepções podem trazer aberturas, assim como Cândido pode observar depois de muito “ir ao encontro” de um destino fértil e feliz, que ele não se realiza se efetivamente não construirmos a realidade que queremos vivenciar. Esperar pelo Outro ou pelo destino, é aceitar o lugar de meros coadjuvantes de vidas e opiniões alheias.
Há quem viva num incessante “vir-a-ser”, acreditando nos “mestres”, “doutrinadores” e “legisladores” de toda ordem, sem ao menos permitirem que outras ideias possam servir-lhes de aperitivo.
Assim, ousamos dizer que quando os mestres são surdos, não há discípulo que escute.
Apesar das decepções diárias experimentadas com o sistema de controle penal, há uma em particular que nos atingiu sobremaneira. Como a angústia[3] propulsiona a reflexão, não poderíamos deixar de compartilhá-la.
A Câmara dos Deputados aprovou no mês de outubro de 2014 a Medida Provisória 651, que amplia o prazo do REFIS.
No texto da MP, foi acrescido no relatório do Deputado Newton Lima (PT-SP), a partir de uma emenda do Senador Gim Argello (PTB-DF), medida esta apoiada pelo líder do PMDB da Câmara Deputado Eduardo Cunha (RJ), um item anistiando parte das dívidas de condenados por desvios de recursos públicos.
O benefício inclui a redução ou até a exclusão de juros e multas, bem como o parcelamento em até 15 anos. Caso seja aprovada pelo Senado e sancionada pela presidência da república, a medida beneficiará empresas e empresários condenados a devolver bilhões aos cofres públicos, como é o caso do ex-senador Luis Estevão ou até mesmo do Grupo OK.
Por meio de assessoria, Argello disse que apresentou a emenda para atender o pedido de um prefeito de uma cidade goiana com dificuldade de quitar uma dívida de R$ 75 mil, que teria crescido muito em razão dos encargos[4].
Que nossos políticos trabalham em causa própria todos sabemos, agora o que chama atenção é ter o deputado em nota oficial admitido que propôs a medida para beneficiar uma determinada pessoa. Ou seja, perdeu-se a vergonha em escancarar os conchavos políticos ao grande público. É uma normalidade bestial legislar em causa própria que nem mesmo tenta-se esconder.
Esta medida representa quão rasteira é nossa política e como se legisla em prol de determinados grupos e pessoas.
Sob a ótica do Direito Penal, fica evidente a seletividade dos beneficiados. Para os amigos do rei, as benesses da lei, para os inimigos a dureza da lei.
Devemos esperar que o Senado faça sua parte e não aprove o benefício. Em mantendo-o, restará o veto presidencial. Uma terceira via para barrar este casuísmo absurdo é o STF. Por fim, caso superadas todas as barreiras de contenção, só podemos pleitear a sua extensão a todos os condenados ao pagamento de multas, seja na esfera criminal ou administrativa, independente do ilícito praticado, pelo princípio da isonomia.
Se prevalecer o benefício aos homens de “bem”, que tenhamos dignidade em estender esta imoralidade legal para todos os homens “maus” também.
Claude Lefort[5] consignou que a legitimidade do poder funda-se sobre o povo. À imagem da soberania popular junta-se a imagem de um lugar vazio, impossível de ser ocupado, de tal modo que os que exercem a autoridade pública não poderiam pretender apropriar-se dela, o que foi bem destacado por Zizek[6].
Com Voltaire, afirma-se que se o leitor aprende algo com a ingenuidade teimosa de Cândido, é justamente a plantar o seu jardim sem grandes ilusões, fazendo frente aos horrores do mundo com as mangas arregaçadas.
Portanto, são sejamos ingênuos e inocentes, pois de Cândido eles não tem nada.
 Fabiano Oldoni possui mestrado em Ciência Jurídica. É professor titular das disciplinas de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Processual Penal pela Univali/SC. Autor do livro “Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social (2014 Lumen Juris)”. Advogado integrante de Silva & Oldoni Advogados Associados. Blog em www.fabianooldoni.blogspot.com.br. 
Mayara Cristina F. Oldoni é  Psicóloga com formação em Psicoterapia Fenomenológico-Existencial.

Bibliografia
OLDONI. Mayara Cristina F. Falando sobre consciência, disponível em http://www.psicoexistencial.com.br/falando-sobre-consciencia/#more-738.
JÚNIOR, Airto Chaves; OLDONI, Fabiano. Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2014.
LEFORT, CLAUDE. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1987.
WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito, vol. I, Porto Alegre: Fabris Editor, 1994.
VOLTAIRE. Cândido. São Paulo:L&PM, 2013.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.
Referências
[1] Sobre a expressão, explica Luiz Alberto Warat que “os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas verdades e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto” (in Introdução geral ao Direito, vol. I, Porto Alegre: Fabris Editor, 1994, p. 15).
[2] Um estudo mais detalhado pode ser encontrado no livro Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2014, de Airto Chaves Júnior e Fabiano Oldoni.
[3] Estudo sobre a consciência, enquanto instrumento de perguntas, enfrentamentos, diálogo, relação, possibilidade de atuar profissional que foge ao mecanicismo diário, pode ser visto in OLDONI. Mayara Cristina F. Falando sobre consciência, disponível em http://www.psicoexistencial.com.br/falando-sobre-consciencia/#more-738, acesso em 29 de out. de 2014.
[4] Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/10/1536700-camara-alivia-multas-para-quem-desvia-verba-publica.shtml, acesso em 23 de outubro de 2014.
[5] LEFORT, CLAUDE. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 76.
[6] ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.

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