terça-feira, 21 de outubro de 2014

Homem de bem, que crime(s) você praticou hoje?

Por Airto Chaves Júnior e Fabiano Oldoni
Em 06 de março de 1927, o filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970) proferiu uma palestra em Battersea, organizado pela Secção do Sul de Londres da National Secular Society. O trabalho, intitulado “Porque não sou Cristão”, foi publicado posteriormente em 1957, quando foram reunidos textos e discursos do autor publicados e proferidos ao longo dos anos que antecederam a publicação, nesta oportunidade, acrescido do subtítulo “(…) e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos”.
Como matemático e, assim, apoiado nos pilares do logicismo, para apresentar as razões pelas quais não se considera um cristão, Russell procura, inicialmente, tratar de construir um conceito do que é “ser cristão”. Importa anotar que o conceito aqui trazido pelo autor e explicado a partir de significados partilhados que criam e sustentam a estrutura do “ser cristão” é, sem dúvida, objeto de concordância de quase que a totalidade das pessoas que se dizem cristãos. A partir disso, o autor identifica características indispensáveis que alguém, realmente cristão, deve ostentar. Dentre as muitas anotadas, vale registrar aqui o título que cuida do “Caráter de Cristo”. Neste campo, citamos o autor:
(…) Acho que há muitíssimos pontos em que concordo com Cristo muito mais do que o fazem os cristãos professos. Não sei se poderia concordar com Ele em tudo, mas posso concordar muito mais do que a maioria dos cristãos professos o faz. Lembrar-voceis que Ele disse: “Não resistais ao mau, mas, se alguém te ferir em tua face direita, apresenta-lhe também a outra”. Isto não era um preceito novo, nem um princípio novo. Foi usado por Lao-Tse e por Buda cerca de quinhentos ou seiscentos anos antes de Cristo, mas não é um princípio que, na verdade, os cristãos aceitem. Não tenho dúvida de que o Primeiro-Ministro (Stanley Baldwin), por exemplo, seja um cristão sumamente sincero, mas não aconselharia a nenhum de vós que o ferisse na face. Penso que, então, poderíeis descobrir que ele considerava esse texto como algo que devesse ser empregado em sentido figurado. Há um outro ponto que julgo excelente. Lembrar-vos-eis, por certo, de que Cristo disse: “Não julgueis, para que não sejais julgados”. Não creio que vós considerásseis tal princípio como sendo popular nos tribunais dos países cristãos. Conheci, em outros tempos, muitos juízes que eram cristãos sumamente convictos, e nenhum deles achava que estava agindo, no que fazia, de maneira contrária aos princípios cristãos. Cristo também disse: “Dá a quem te pede, e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes”. (…) Há ainda uma máxima de Cristo que, penso, contém nela muita coisa, mas não me parece seja muito popular entre os nossos amigos cristãos. Diz Ele: “Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, e dá-o aos pobres”. Eis aí uma máxima excelente, mas, como digo, não é muito praticada. Todas estas, penso, são boas máximas, embora seja um pouco difícil viver-se de acordo com elas. Quanto a mim, não afirmo que o faça – mas, afinal de contas, isso não é bem o mesmo que o seria tratando-se de um cristão. 
Problema é que, a partir dos predicados levantados numa construção razoavelmente consensual (e que, fatalmente, aqueles que se consideram Cristãos concordam), desconfiamos que pouquíssimas (para não dizer nenhuma) das pessoas que se dizem Cristãos se encaixam nestes atributos. E, se assim o é, essas pessoas, apesar de se intitularem Cristãos, não o são.
Por via contrária, há uma probabilidade beirando a certeza de você que se diz Cristão (e, pelo que se verificou, não o é) ser, na verdade, um criminoso. Para tanto, faz-se necessário um exame de consciência e, sobretudo, apesar das dificuldades, uma autocrítica de seu comportamento diário. Antes, porém, façamos o que fez Bertrand Russell com a teoria ramificada dos tipos: conceituemos “criminoso”.
Creio que concordemos que “criminosa” é a pessoa que pratica algum crime. Dentro desta perspectiva, QUALQUER PESSOA que tenha o seu comportamento subsumido a algum tipo penal pode ser considerada delinquente.
Resolvida esta questão, façamos agora o exame de consciência e exercício de memória para verificar se praticamos alguns desses comportamentos listados a seguir: se emprestamos um objeto de alguém e não o restituímos, incorremos no crime de apropriação indébita; se nos embriagamos ou nos entorpecemos de outras formas e passamos a conduzir um veículo automotor com capacidade psicomotora alterada, praticamos o crime de embriaguez ao volante; se ameaçamos alguém para que pague uma dívida (legítima), incorremos no delito de exercício arbitrário das próprias razões; ao momento em que atribuímos adjetivações depreciativas à outra pessoa, ofendendo a sua dignidade ou decoro, praticamos o crime deinjúria; se registramos informação não verdadeira ou omitirmos informação em documento, desde que “com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante”, cometemos o crime de falsidade ideológica (declarar, não sendo verdade, que fulano reside no seu endereço, por exemplo); se fizermos afirmação falsa ou negamos a verdade como testemunha, em processo judicial, ou administrativo, ou mesmo em Inquérito Policial, incorremos no crime de falso testemunho; caso o funcionário público (também o equiparado) se apropria de qualquer valor ou bem de que tem a posse em razão do cargo, em proveito próprio ou alheio, está ele a praticar o crime de peculato. E aqui vale um destaque especial: dificilmente existe servidor público no Brasil que não tenha se enquadrado (ao menos formalmente) nesta infração penal. Basta verificar se ele (o servidor) procede a impressões para fins particulares (seja para estudo, seja para questões outras). Por óbvio que o infrator estatal irá dizer: “mas o prejuízo aqui é irrelevante!”. Sim, concordamos. Porém, muitos desses servidores que frequentemente se valem desse expediente para a solução de questões particulares, são implacavelmente intolerantes com os autores de furtos de bagatela, não hesitando e atribuir-lhes a pecha de “bandidos”.
Além disso, há delitos comumente praticados por aqueles (e, especialmente, por eles) que se dizem “homens bons” e que negam peremptoriamente a carapuça de “criminoso” por sobre suas cabeças: crimes ambientais, crimes de sonegação fiscal, crimes de drogas (usar medicamento controlado pela ANVISA – Portaria 344/98) sem receita (por exemplo, para dormir), crimes de abuso de autoridade, tráfico de influência, exploração de prestígio, descaminho, ameaça, corrupção (ativa e passiva), falsidade documental e outras práticas bastante corriqueiras que se extrai do cotidiano dos auto-intitulados tolerantes “cidadãos de bem”.
O fato é que TODOS NÓS praticamos comportamentos como esses (tipificados penalmente) sem que tenhamos conta de que a impunidade que criticamos em alto tom e aos quatro cantos do Brasil aqui nos favorece. E então, somos criminosos? A resposta é: depende. Se o conceito desta categoria é diagnosticado pela prática da infração penal, a resposta fatalmente será SIM.
Vejam que a gama de tipos penais é tão vasta que se todos os furtos, falsidades, abortos, receptações, corrupções, lesões corporais, ameaças, ou seja, se todas as práticas de infrações penais fossem concretamente criminalizadas, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado.
Então, caso o leitor, fã da repressão e aprisionamento acredite no cárcere como instrumento de transformação do ser humano (para melhor, é claro) tenha alguma vez praticado algum dos comportamentos registrados acima ou ainda, qualquer outro que se encaixe formalmente num tipo penal, perguntamos: quanto tempo atrás das grades seria necessário para você se tornar um verdadeiro “homem de bem”? Ou, você é um delinquente que não merece repressão e que se vale da impunidade que tanto critica?
Pois é. Para acabar com a criminalidade (por completo), como prega insistentemente o “homem de bem”, ao que parece, seria necessário exterminar com uma das fontes de criminalização: ou com o objeto criminalizador (Direito Penal) ou com o sujeito criminalizado (ser humano). Simples assim.
Vejam, então, que o discurso ancorado no tripé endurecimento das leis, repressão penal e encarceramento desfigura a realidade, sobretudo, porque não serve nem mesmo para quem o sustenta. Conforme anotam Hassemer e Muñoz Conde, não existe nenhuma sociedade sem crimes. Os crimes estão intimamente ligados ao processo de socialização dos indivíduos, de forma que o conflito tem de desempenhar um papel e até mesmo uma missão na manutenção e evolução da sociedade. Este, aliás, é o lugar onde a sociologia funcionalista desenvolve sua tese sobre a normalidade do crime: conceber a sociedade como um sistema de pessoas inter-relacionadas. E o que isso quer dizer? Especialmente, que “não há nenhum fenômeno que inevitavelmente mostre todos os sintomas de crime”. Estanquemos essa ingenuidade (ou má-fé, a depender de quem discursa), pois o desvio tem origem na distribuição de papéis dentro de qualquer sociedade.
Agora, se você, homem de bem, diz-se ainda “cristão” e “não delinquente”, procure utilizar dos (SEUS) conceitos de “ser cristão” e “ser criminoso” para aquele contra quem você brada por repressão e cárcere. O que não é razoável é o incremento de dois discursos: um, que atende aos seus interesses mais próximos; outro, para quem se pretende manter distância. Neste caso, além de delinquente, você comportaria um grau elevadíssimo de hipocrisia e, então, tomando-se por base o logicismo de Russell, conveniaria atribuir-te uma tríplice adjetivação nos seguintes termos: “não cristão”, “delinquente” e “hipócrita”.
Para finalizar, e em homenagem ao “homem-de-bem”, uma reflexão brechtiana intitulada “Perguntas a um bom homem” serve aqui:
Avança: ouvimos dizer que és um homem bom.
Não te deixas comprar, mas o raio que incendeia a casa, também não pode ser comprado.
Manténs a tua palavra. Mas que palavra disseste?
És honesto, dás a tua opinião. Mas que opinião?
És corajoso. Mas contra quem?
És sábio. Mas para quem?
Não tens em conta os teus interesses pessoais. Que interesses consideras, então?
És um bom amigo. Mas serás também um bom amigo de gente boa?
Agora, escuta:
Sabemos que és nosso inimigo. Por isso, vamos encostar-te ao paredão.
Mas tendo em conta os teus méritos e boas qualidades, vamos encostar-te a um bom paredão e matar-te com uma boa bala de uma boa espingarda e enterrar-se com uma boa pá na boa terra.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RUSSELL, Bertrand. Porque não sou cristão: e outros ensaios sobre religião e assuntos correlatos. Tradução de Brenno Silveira. Livraria Exposição do livro, 1972, p. 14-15.
CHAVES JUNIOR, Airto; OLDONI, Fabiano. Para que(m) serve o Direito penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 174-175.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 26.  
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la Criminologia y al Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989, p. 38-39.
Bertolt Brecht, citado por Slavoj Zizek, inViolência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 41-43.

Nenhum comentário: