terça-feira, 3 de março de 2015

O Estatuto da Guarda Municipal é inconstitucional

A Lei nº 13.022, publicada em 11/8/2014, tem por objetivo regulamentar o artigo 144 § 8º da Constituição Federal, criando o Estatuto da Guarda Municipal.
O artigo 144 § 8º da CF estabelece que “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”, ou seja, a própria constituição delimita qual é a atribuição da Guarda Municipal: zelar pelos bens, serviços e instalações do município.
Então, qualquer regulamentação deste artigo deverá ter como limite o próprio artigo e isso não nos parece que seja de difícil compreensão. No caso, não pode uma lei infra-constitucional atribuir funções que não foram previstas no texto constitucional.
A expressão “conforme dispuser a lei” (contido na parte final do art. 144 § 8º da CF), não confere carta branca à lei regulamentadora, a qual deve regulamentar nos limites estabelecidos no texto constitucional, nada mais que isso.
Portanto, se o artigo 144 § 8º da CF atribui à Guarda Municipal a função de proteção dos bens, serviços e instalações do município, a lei regulamentar não pode extrapolar este limite.
Assim, nos cabe analisar quais foram as atribuições que a Lei nº 13.022 trouxe para a Guarda Municipal e verificar se elas estão dentro do limite constitucional.
O artigo 1º da Lei nº 13.022 começa bem ao informar o lógico: “Esta Lei institui normas gerais para as guardas municipais, disciplinando o § 8º do art. 144 da Constituição Federal”.  
O artigo 2o informa que “Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal”.
Por proteção municipal preventiva devemos entender atuação junto aos bens, serviços e instalações do município.
O artigo 3º estabelece quais os princípios que norteiam a Guarda Municipal. Seriam eles: I – proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas; II – preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas; III – patrulhamento preventivo; IV – compromisso com a evolução social da comunidade; e V – uso progressivo da força. 
Verificando estes “princípios” norteadores (sempre tendo como referente o artigo 144 § 8º da CF), surgem algumas dúvidas:
1) Inciso I – proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas? Esta redação é de uma vagueza e extensão que causa espécie. Além do que a Constituição não atribui à Guarda Municipal estas atribuições.
2) Inciso II – preservação da vida, redução do sofrimento e diminuição das perdas? Da mesma forma, estas atribuições não foram outorgadas à Guarda Municipal pela Constituição. Mas caso aceitemos este norte, perguntamos qual sofrimento (físico, psíquico, moral etc.) e quais perdas (emocionais, patrimoniais, conjugais etc.)? Quanta pretensão do legislador.
3) Inciso III – Patrulhamento preventivo? Desde que seja para prevenir infrações contra bens, serviços e instalações do município, pode.
4) Inciso IV – Compromisso com a evolução social da comunidade? Isso me parece mais política pública, a ser destinada aos agentes públicos do executivo e legislativo. Fico imaginando como a Guarda Municipal poderá contribuir com a evolução social da comunidade, criando empregos, aumentando a renda dos trabalhadores, educando as crianças, jovens, enfim é a Guarda Hércules. Não precisaremos nem mais da classe política. Pensando bem…
5) Inciso V – Uso progressivo da força? Desde que seja destinado para garantir os bens, serviços e instalações do município.
Já o artigo 4º traz a competência denominada de “geral” da Guarda Municipal, a qual está perfeitamente de acordo com a Constituição: “É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município”.
Por sua vez o artigo 5º[1] estabelece as competências específicas. Mas existem outras competências diversas daquela prevista no artigo 144 § 8º da CF?
No todo são dezoito incisos estabelecendo a competência específica da Guarda Municipal, o que já é estranho, tendo em vista que o artigo 144 § 8º da CF traz apenas uma atribuição/competência (proteção) aplicável a três itens (bens, serviços e logradouros públicos municipais).
Veremos apenas aquelas atribuições que, a nosso ver, afrontam a Constituição e, por isso, são inconstitucionais, justamente por criar atribuições não previstas no artigo 144 § 8º CF.
Art. 5º, inc. III da Lei 13.022 – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais:
Uma coisa é a proteção dos bens, serviços e instalações do município, outra coisa é atuar na proteção da população que os utiliza. A população não se enquadra em  “bens, serviços e instalações”, mesmo com a maior boa vontade interpretativa. A menos que eu iguale pessoas a objetos (bens, serviços e instalações), o que não nos parece seja a vontade do legislador e muito menos possível biologicamente.
Esta proteção é apenas enquanto a população estiver usando os bens, serviços e instalações? (aqui já avançando na interpretação do inciso, supondo que ele seja constitucional).
IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social:
A Constituição não conferiu poderes para a Guarda Municipal neste sentido. Quem possui atribuição de contribuir com a paz social (sem entrar no mérito se isso é possível por meio da força policial) é a polícia judiciária (civil e federal) e a preventiva (militar, rodoviária etc.).
O que o inciso pretende é autorizar a Guarda Municipal a colaborar com os órgãos que possuem poder de polícia (Artigo 144 incisos I a V da CF). O problema é que as polícias (judiciária e preventiva) não podem delegar função a quem não tem função (guarda municipal). Nem mesmo a lei infra-constitucional, neste caso, pois está limitada pela Constituição. 
V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas:
Desde que seja conflito que atente contra bens, serviços e instalações do município. Lembrem, limitação constitucional. Nos demais conflitos poderá (faculdade) a Guarda Municipal agir, já que não está obrigada pela Constituição a atuar em conflitos entre, por exemplo, a polícia militar e assaltantes.
VI – exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal:
Trânsito? Para isso não temos os Agentes de Trânsito? Além do que não consigo enquadrar o trânsito como bens, serviços e instalações do município. 
Diz o inciso “nos termos da Lei nº 9.503”, que é o CTB. Mas o CTB, no seu artigo 7º, quando estabelece quem compõe o Sistema Nacional de Trânsito [2], não elenca a Guarda Municipal como um de seus integrantes. Esqueceram de combinar com o legislador da Lei nº 9.503.
A inovação aqui é flagrante. Criaram função para a Guarda Municipal (em afronta à Constituição) que nem mesmo o CTB havia imaginado lhe conferir.
VIII – cooperar com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades:
Desde que seja para atuar na proteção de bens, serviços e instalações do município.
IX – interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades:
X – estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas:
Ambos os incisos atribuem à Guarda função de política pública na área da segurança, papel que não lhe é conferido pela CF.
XI – articular-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município:
Desde que a sua atuação na segurança fique limitado aos poderes concedidos pela Constituição.
XIII – garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas;
Se estas ocorrências forem relativas aos bens, serviços e instalações do município, a Guarda tem a obrigação de agir. Caso contrário, tem ela a faculdade de agir, pois a sua atribuição legal constitucional é restrita.
Poderá prender em flagrante delito, como qualquer pessoa do povo (artigo 301 CPP), mas não está obrigada a agir assim nos casos que não envolvam o patrimônio municipal.
XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário:
O encaminhamento ao delegado de polícia é uma obrigação nos casos que envolvam crimes contra bens, serviços e instalações do município. Nos demais flagrantes, como não tem a obrigação constitucional de agir, mas a faculdade, não está obrigada a dar encaminhamento, podendo acionar qualquer autoridade policial, até mesmo a polícia militar.
O mesmo raciocínio se faz com relação a preservação do local do crime. Poderia ser exigido tal incumbência nos crimes contra bens, serviços e instalações do município (o que também é questionável, já que essa função é do Delegado de Polícia).
Nos demais crimes não tem obrigação e autorização constitucional para zelar pela cena do crime. Isso é função da polícia judiciária: Delegado de Polícia (artigo 6º inciso I do CPP). 
XV – contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte:
XVI – desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal:
Novamente temos dois incisos que atribuem à Guarda uma função de política pública na área da segurança, papel que não lhe é conferido pela Constituição.
XVII – auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários:
Esta segurança, em grandes eventos, deve ficar restrita aos bens, serviços e instalações do município.
A proteção das autoridades e dignatários não é atribuição conferida pela Constituição Federal, a não ser que concordamos que tais pessoas são patrimônio municipal #sqn.
Indo além, a segurança é para qualquer autoridade? Federal, Estadual e Municipal? Da administração direta e indireta? Qual é o limite disso?
XVIII – atuar mediante ações preventivas na segurança escolar, zelando pelo entorno e participando de ações educativas com o corpo discente e docente das unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantação da cultura de paz na comunidade local:
Ação preventiva a que? Ao crime em geral ou apenas aos crimes contra bens serviços e instalações municipais? Este inciso, como tantos outros, confere à Guarda Municipal um papel de prevenção geral, com participação em políticas públicas de segurança, o que não é uma má ideia. O problema é que a Constituição (como já falado inúmeras vezes) limita a sua atuação na proteção dos bens e blá blá blá do município.
Parágrafo único.  No exercício de suas competências, a guarda municipal poderá colaborar ou atuar conjuntamente com órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal ou de congêneres de Municípios vizinhos e, nas hipóteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante do comparecimento de órgão descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal, deverá a guarda municipal prestar todo o apoio à continuidade do atendimento:
Começa o parágrafo “no exercício de suas competências”, que é aquela do artigo 144 § 8º CF. Então toda e qualquer ação conjunta da Guarda Municipal com outros órgãos de segurança pública deve ficar restrito ao citado artigo constitucional.
Em suma, temos uma lei que ao regulamentar a Guarda Municipal, lhe confere atribuições que não estão previstas no artigo 144 § 8º da Constituição Federal.
Não somos contra a atuação da Guarda Municipal nas matérias acima analisadas, desde que o texto constitucional assim autorize.
Já houve o ingresso da ADI 5156 para questionar esta lei, cabendo agora ao STF a posição final.
Quem ingressou com a ADI foi a Feneme, sustentando que a lei transformou as guardas em polícias e em bombeiros, com funções de prevenção e repressão imediata, além do atendimento de situações de emergência, em total afronta ao texto constitucional. A federação enfatiza que a atuação das guardas municipais como polícia gera um risco jurídico no campo penal, caso as autoridades entendam que os guardas municipais, ao agirem fora do mandamento constitucional, estejam prevaricando de suas funções (Fonte: notícias do STF)
Fabiano Oldoni é Doutorando em Ciências Públicas na Escola de Direito da Universidade do Minho-Portugal; Possui mestrado em Ciência Jurídica e Especialização em Direito Penal Empresarial pela Univali. É professor titular das disciplinas de Direito Processual Penal e Prática Jurídica Processual Penal pela Univali. Coordenador do Projeto de Execução Penal junto ao Sistema Penitenciário de Itajaí (convênio Univali/CNJ). Autor dos livros “Para que(m) serve o Direito Penal: uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social” (2014 Lumen Juris); “Aquisição da propriedade ilícita pela usucapião” (2013 Paco Editorial) e “Arrendamento Mercantil Financeiro: os efeitos do pagamento antecipado do Valor Residual e do Valor Residual Garantido” (2006 – Editora BH), além de artigos publicados em revistas e periódicos. Advogado integrante de Silva & Oldoni Advogados Associados. Blog em www.fabianooldoni.blogspot.com.br

[1] Art. 5o  São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:  
I – zelar pelos bens, equipamentos e prédios públicos do Município;  
II – prevenir e inibir, pela presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais;  
III – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais;  
IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;  
V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;  
VI – exercer as competências de trânsito que lhes forem conferidas, nas vias e logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convênio celebrado com órgão de trânsito estadual ou municipal;  
VII – proteger o patrimônio ecológico, histórico, cultural, arquitetônico e ambiental do Município, inclusive adotando medidas educativas e preventivas;
VIII – cooperar com os demais órgãos de defesa civil em suas atividades;
IX – interagir com a sociedade civil para discussão de soluções de problemas e projetos locais voltados à melhoria das condições de segurança das comunidades;
X – estabelecer parcerias com os órgãos estaduais e da União, ou de Municípios vizinhos, por meio da celebração de convênios ou consórcios, com vistas ao desenvolvimento de ações preventivas integradas;
XI – articular-se com os órgãos municipais de políticas sociais, visando à adoção de ações interdisciplinares de segurança no Município;
XII – integrar-se com os demais órgãos de poder de polícia administrativa, visando a contribuir para a normatização e a fiscalização das posturas e ordenamento urbano municipal;
XIII – garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas;
XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário;
XV – contribuir no estudo de impacto na segurança local, conforme plano diretor municipal, por ocasião da construção de empreendimentos de grande porte;
XVI – desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal;
XVII – auxiliar na segurança de grandes eventos e na proteção de autoridades e dignatários; e
XVIII – atuar mediante ações preventivas na segurança escolar, zelando pelo entorno e participando de ações educativas com o corpo discente e docente das unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantação da cultura de paz na comunidade local.
Parágrafo único.  No exercício de suas competências, a guarda municipal poderá colaborar ou atuar conjuntamente com órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal ou de congêneres de Municípios vizinhos e, nas hipóteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante do comparecimento de órgão descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal, deverá a guarda municipal prestar todo o apoio à continuidade do atendimento.
 [2] Art. 7º Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades:
 I – o Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, coordenador do Sistema e órgão máximo normativo e consultivo;
 II – os Conselhos Estaduais de Trânsito – CETRAN e o Conselho de Trânsito do Distrito Federal – CONTRANDIFE, órgãos normativos, consultivos e coordenadores;
 III – os órgãos e entidades executivos de trânsito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
 IV – os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
 V – a Polícia Rodoviária Federal;
 VI – as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal; e
 VII – as Juntas Administrativas de Recursos de Infrações – JARI

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