O
recebimento da denúncia, por parte do juiz, é decisão que dá origem ao processo
crime, atribuindo ao acusado carga acusatória expressiva e relevante, capaz
de causar-lhe uma série de inconvenientes.
Ora,
se é decisão (quiçá a mais importante até a sentença), imagina-se
deva ser fundamentada, apresentando o juiz os elementos indiciários de autoria
e materialidade, já visualizados pelo Ministério Público na elaboração da
inicial. Apenas cumpriria o artigo 93, inciso IX da CF.
Mas
o que vivenciamos, salvo raríssimas exceções vindas, na sua maioria, da Justiça
Federal, são decisões recebendo denúncia sem fundamentação alguma. Decisões padrões
como “não visualizadas as hipóteses de rejeição, recebo a denúncia. Cite-se o
acusado para apresentar defesa no prazo de 10 dias”, são o cartão de visita de
nossos juízes.
O
silêncio do juiz é perturbador.
A
defesa sequer ousa questionar tal ato (ou ausência dele), posto que a jurisprudência
é “mansa” e “pacífica” neste sentido. Uma amostra é o julgado do STF, dando
ênfase ao entendimento “consolidado” da corte:
HABEAS CORPUS.
CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DECORRENTE DA AUSÊNCIA
DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA: IMPROCEDÊNCIA.
PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal
no sentido de que o ato judicial que formaliza o recebimento da denúncia
oferecida pelo Ministério Público não se qualifica nem se equipara, para os
fins a que se refere o art. 93, inciso IX, da Constituição, a ato de
caráter decisório. O juízo positivo de admissibilidade da acusação penal, ainda
que desejável e conveniente a sua motivação, não reclama, contudo,
fundamentação. Precedentes[1].
O Processo
Penal democrático, apresentado ao Brasil na Constituição de 1988, não admite atos
judiciais que causem repercussão à parte sem fundamentação.
Numa correlação
lógica, se o juiz é obrigado a motivar a decisão que rejeitar a denúncia,
porque a decisão que recebe a denúncia não precisa ser motivada?
Aceitar esta
premissa é considerar o processo penal como um instrumento de acusação, de
interesse da sociedade, onde a rejeição da denúncia obriga ao juiz demonstrar
ao acusador e à sociedade os motivos de seu convencimento, já que tomou uma
decisão que contraria a finalidade do processo penal.
Entendimento
superado.
Processo
Penal é instrumento de garantia dos direitos do cidadão (qualquer cidadão) contra
poder/dever punitivo do Estado. É um limitador da fúria punitiva estatal.
Neste sentido,
o processo penal interessa muito mais ao acusado do que ao acusador ou
sociedade em geral. É, sem dúvida, um instrumento destinado a garantir direitos.
Assim, toda
a limitação de direitos que o Estado praticar (o recebimento da denúncia limita
direitos, na medida em que autoriza a prática de vários atos em desfavor do
acusado no curso do processo - busca e apreensão, prisão etc.), exige ato fundamentado,
onde o juiz deve “prestar contas”, ao regime democrático que o guia, da decisão
que afasta garantias fundamentais.
O
Ministro Nilson Naves, do STJ, sensível a esta problemática, proferiu a seguinte
decisão:
1. Foi em 1973 que se instalou, no Supremo Tribunal, a
propósito da natureza do ato judicial de recebimento da denúncia, inteligente e
mágica discussão entre Bilac, Alckmin e Xavier, e lá prevaleceu o entendimento
de que tal ato, se possui carga decisória, não é, entretanto, "ato decisório
mencionado no art. 567". 2. Então, decerto que o recebimento da denúncia
não é simples despacho de expediente, ao contrário, pois, de Toledo, no
Superior Tribunal, em 1995, no RHC-4.240. De igual sorte, Medina e Quaglia, nos
anos 2004 e 2005, nos RHCs 13.545 e 17.974. 3. É, então, correto, hoje e agora,
interpretando a regra do art. 516 do Cód. de Pr. Penal, admitir que, se se
exige a rejeição da denúncia (ato negativo) em despacho fundamentado, também a
decisão que a recebe (ato positivo) há de ser, sempre e sempre, devidamente
fundamentada. 4. Pensar de maneira outra seria colocar à frente da liberdade a
pretensão punitiva, quando, é sabido, o que se privilegia é a liberdade. Nunca
é demais lembrar: (I) "havendo normas de opostas inspirações ideológicas
antinomia de princípio , a solução do conflito (aparente) há de privilegiar a
liberdade, porque a liberdade anda à frente dos outros bens da vida, salvo à
frente da própria vida" ; e (II) "impõe-se, isto sim, se extraiam
consequências de um bom, se não excelente, princípio/norma, que cumpre ser
preservado para o bem do Estado democrático de direito" . 5. Ordem de
habeas corpus concedida para se anular toda a ação penal desde, e inclusive, o
recebimento da denúncia a que se procedeu sem fundamentação.[2]
Não podemos nos esconder atrás das posições consolidadas da jurisprudência,
quando o assunto é limitação de garantias fundamentais.
Talvez com a necessidade de fundamentar o recebimento da
denúncia, os juízes sejam obrigados a ler (com os próprios olhos) os elementos
indiciários que embasam a acusação, quando, então, perceberão que muitos
processos sequer deveriam ser iniciados.
Evitarão, assim, o processamento de condutas sem o mínimo de
indícios de autoria e materialidade.
A fundamentação do recebimento da denúncia exigiria do juiz um
pouco mais de tempo e atenção, que resultará numa diminuição de processos
natimortos.
Enquanto isso, prevalece o silêncio dos juízes no recebimento da
denúncia.
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