quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O SILÊNCIO DOS JUÍZES


O recebimento da denúncia, por parte do juiz, é decisão que dá origem ao processo crime, atribuindo ao acusado carga acusatória expressiva e relevante, capaz de causar-lhe uma série de inconvenientes.

Ora, se é decisão (quiçá a mais importante até a sentença), imagina-se deva ser fundamentada, apresentando o juiz os elementos indiciários de autoria e materialidade, já visualizados pelo Ministério Público na elaboração da inicial. Apenas cumpriria o artigo 93, inciso IX da CF.

Mas o que vivenciamos, salvo raríssimas exceções vindas, na sua maioria, da Justiça Federal, são decisões recebendo denúncia sem fundamentação alguma. Decisões padrões como “não visualizadas as hipóteses de rejeição, recebo a denúncia. Cite-se o acusado para apresentar defesa no prazo de 10 dias”, são o cartão de visita de nossos juízes.

O silêncio do juiz é perturbador.

A defesa sequer ousa questionar tal ato (ou ausência dele), posto que a jurisprudência é “mansa” e “pacífica” neste sentido. Uma amostra é o julgado do STF, dando ênfase ao entendimento “consolidado” da corte:
HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DECORRENTE DA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA: IMPROCEDÊNCIA. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o ato judicial que formaliza o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público não se qualifica nem se equipara, para os fins a que se refere o art. 93, inciso IX, da Constituição, a ato de caráter decisório. O juízo positivo de admissibilidade da acusação penal, ainda que desejável e conveniente a sua motivação, não reclama, contudo, fundamentação. Precedentes[1].

O Processo Penal democrático, apresentado ao Brasil na Constituição de 1988, não admite atos judiciais que causem repercussão à parte sem fundamentação.

Numa correlação lógica, se o juiz é obrigado a motivar a decisão que rejeitar a denúncia, porque a decisão que recebe a denúncia não precisa ser motivada?

Aceitar esta premissa é considerar o processo penal como um instrumento de acusação, de interesse da sociedade, onde a rejeição da denúncia obriga ao juiz demonstrar ao acusador e à sociedade os motivos de seu convencimento, já que tomou uma decisão que contraria a finalidade do processo penal.

Entendimento superado.

Processo Penal é instrumento de garantia dos direitos do cidadão (qualquer cidadão) contra poder/dever punitivo do Estado. É um limitador da fúria punitiva estatal.

Neste sentido, o processo penal interessa muito mais ao acusado do que ao acusador ou sociedade em geral. É, sem dúvida, um instrumento destinado a garantir direitos.

Assim, toda a limitação de direitos que o Estado praticar (o recebimento da denúncia limita direitos, na medida em que autoriza a prática de vários atos em desfavor do acusado no curso do processo - busca e apreensão, prisão etc.), exige ato fundamentado, onde o juiz deve “prestar contas”, ao regime democrático que o guia, da decisão que afasta garantias fundamentais.

O Ministro Nilson Naves, do STJ, sensível a esta problemática, proferiu a seguinte decisão:

1. Foi em 1973 que se instalou, no Supremo Tribunal, a propósito da natureza do ato judicial de recebimento da denúncia, inteligente e mágica discussão entre Bilac, Alckmin e Xavier, e lá prevaleceu o entendimento de que tal ato, se possui carga decisória, não é, entretanto, "ato decisório mencionado no art. 567". 2. Então, decerto que o recebimento da denúncia não é simples despacho de expediente, ao contrário, pois, de Toledo, no Superior Tribunal, em 1995, no RHC-4.240. De igual sorte, Medina e Quaglia, nos anos 2004 e 2005, nos RHCs 13.545 e 17.974. 3. É, então, correto, hoje e agora, interpretando a regra do art. 516 do Cód. de Pr. Penal, admitir que, se se exige a rejeição da denúncia (ato negativo) em despacho fundamentado, também a decisão que a recebe (ato positivo) há de ser, sempre e sempre, devidamente fundamentada. 4. Pensar de maneira outra seria colocar à frente da liberdade a pretensão punitiva, quando, é sabido, o que se privilegia é a liberdade. Nunca é demais lembrar: (I) "havendo normas de opostas inspirações ideológicas – antinomia de princípio –, a solução do conflito (aparente) há de privilegiar a liberdade, porque a liberdade anda à frente dos outros bens da vida, salvo à frente da própria vida" ; e (II) "impõe-se, isto sim, se extraiam consequências de um bom, se não excelente, princípio/norma, que cumpre ser preservado para o bem do Estado democrático de direito" . 5. Ordem de habeas corpus concedida para se anular toda a ação penal desde, e inclusive, o recebimento da denúncia – a que se procedeu sem fundamentação.[2]

Não podemos nos esconder atrás das posições consolidadas da jurisprudência, quando o assunto é limitação de garantias fundamentais.

Talvez com a necessidade de fundamentar o recebimento da denúncia, os juízes sejam obrigados a ler (com os próprios olhos) os elementos indiciários que embasam a acusação, quando, então, perceberão que muitos processos sequer deveriam ser iniciados.

Evitarão, assim, o processamento de condutas sem o mínimo de indícios de autoria e materialidade.

A fundamentação do recebimento da denúncia exigiria do juiz um pouco mais de tempo e atenção, que resultará numa diminuição de processos natimortos.

Enquanto isso, prevalece o silêncio dos juízes no recebimento da denúncia.



[1] HC 101971 SP - Min. Cármen Lúcia.
[2] HC 76319 SC 2007/0022098-8 – SC.

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