quarta-feira, 1 de outubro de 2014

VIDRAÇAS EMBAÇADAS E A CRISE DE PERCEPÇÃO


A mãe, ao olhar a agenda de seu filho verifica uma anotação da professora, informando que a criança não fez a atividade solicitada como tarefa escolar. O que deve fazer? Conversar com a criança, certamente. Ir à escola falar com a professora. Talvez, dependendo da situação. Dirigir-se a uma delegacia de polícia para fazer um boletim de ocorrência pelo fato da professora ter feito a anotação na agenda. Não? Sim?
Em uma escola da rede municipal de Caxias do Sul/RS, uma professora solicitou aos alunos que fizessem um trabalho escolar com base em um livro. Uma das alunas não fez a atividade alegando não ter material de pesquisa, o que motivou a professora a registrar na agenda escolar da aluna uma advertência porque ela não entregou o trabalho.
A mãe da aluna foi até a escola exigir satisfações e na sequência foi até a delegacia de polícia registrar um boletim de ocorrência  (saiba mais).
Achou estranho? Pois não deveria.
Atitude como esta não deveria causar estranheza, afinal o apelo ao Direito Penal como instrumento solucionador das questões sociais é intenso. Mesmo que o ato da mãe seja equivocado, precisamos compreender que sua atitude é condizente com o que a sociedade, em geral, pensa: o Direito Penal (e todas as suas agências) é o instrumento mais adequado para pacificar a sociedade.
Vende-se esta bandeira na mídia e nas falácias cotidianas. Compra-se este discurso facilmente, sem reflexão, pois não se reflete sobre o que não se conhece.
A culpa não é da mãe, mas de uma sociedade que instiga a população a pensar e agir desta forma. Basta ver a bandeira punitivista tremulando nas campanhas eleitorais. O bem e o mal, separados por um clichê. Os bons somos nós e os maus são eles.
A percepção do real está em crise. Quando não se conhece o objeto, parte-se para uma concepção construída a partir de informações externas. No caso do Direito Penal, de desinformações.
Uma crescente onda de violência urbana é reprisada diariamente nas mídias, conseguindo incutir uma sensação de insegurança e medo. Bauman e Glassner trataram adequadamente o tema.
A salvação para o medo é o encarceramento. O aparato policial é chamado a intervir no cotidiano.
Uma percepção correta sobre como funciona o sistema é ignorada pela maioria da população, que vive no senso comum folclórico, muitas vezes induzidas pelo senso comum teórico e a busca pelo aparato policial para denunciar uma repreensão educativa por parte do professor começa a fazer sentido para uma população que adere ao falso discurso de que as agências de controle penal são a última salvaguarda da moralidade pública.
Como bem alertou Zizek (in violência), enquanto as cenas de violência sequestram nossa atenção todos os dias, não percebemos que a verdadeira violência exercida pelos grandes mantenedores do neoliberalismo mata muito mais e de forma muito mais rápida que os crimes urbanos.
As vidraças estão embaçadas, impedindo a correta visão dos fatos. Precisamos urgentemente torná-las límpidas e transparentes. O embaçamento pode ser interno, acessível somente ao sujeito, cabendo a ele esforçar-se para desfazê-lo, buscando informação e refletindo criticamente sobre o que lhe é oferecido como solução mágica.
Em nosso livro Para que(m) serve o Direito Penal? procuramos demonstrar que o sistema de controle social (formal e informal) age com a premissa da seletividade e por este motivo interessa a poucos, em detrimento da maioria. Causa muita violência, não a previne.
Não temos outro caminho, senão por meio da linguagem tentar mudar a atual crise da percepção sobre medo, violência e punição.
Se não quisermos mais ver atitudes como a desta mãe, precisamos mudar o discurso e fazer coro desta mudança. Precisamos abrir os olhos e enxergar um pouco além daquilo que nos mostram (ou nos querem mostrar), além do discurso vazio, além daquilo que noticiam os meios de comunicação, e muito além do enganoso e hipócrita discurso de que o Direito Penal pacifica as relações sociais.
(Artigo publicado por Airto Chaves Jr e Fabiano Oldoni no justificando.com.br, em 01/out/2014 (link)

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