quinta-feira, 4 de maio de 2017

O trabalho como condição do regime aberto: e o meu direito de vadiar?

Publicado originalmente no justificando


O melhor da vida
É a sensação de paz e amor
O melhor da vida
Um dia só pra vadiar

– Charlie Brown Jr
Sou obrigado a trabalhar ou tenho o direito de vadiar, viver no ócio, de um lado para o outro, numa vida mansa sem fazer parte das engrenagens do capital?
Em tempos de legislações sombrias e de ideais higienistas, nos sobrou inúmeras referências proibitivas ao ato de vadiar, sendo a mais evidente o artigo 59 da Lei de Contravenção Penal. Hoje é quase unânime que referido dispositivo legal não foi recepcionado pela Constituição de 1988, uma vez que fere o direito fundamental de ir e vir, dentre outros preceitos garantistas.[1]
Contudo, outros dispositivos com esse sentido ainda estão sendo aplicados. É o caso do artigo 114, inciso I da Lei de Execução Penal, que traz como condição ao regime aberto estar o preso trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente.
Referido comando, aplicado diuturnamente pelos juízes da execução penal, penso que também não tenha sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois, da mesma forma que a vadiagem, contraria direitos fundamentais do sujeito, especialmente o direito de ir e vir, bem como atribui obrigação (forçar o cidadão a labutar) que ultrapassa a função do Estado.
Além do que, trata de forma não isonômica os sujeitos que foram condenados e os que não sofreram uma condenação criminal. Ora, se alguém que não praticou crime e não tenha cumprido pena não está obrigado a trabalhar, por que o preso tem essa obrigação para estar em liberdade?
Qual o sentido dessa diferenciação? Seria o trabalho um impeditivo para a prática de crime? Que raciocínio ingênuo. Nós trabalhamos e nem por isso deixamos de praticar crimes (ou você não?). Se ele for impeditivo de crime, então estou eu, que não fui condenado, obrigado a trabalhar para prevenir eventual conduta ilícita? Mas não tenho essa obrigação, como vimos. Porém o preso tem.
Os tribunais têm enfrentado o tema de forma muito superficial, eis que em alguns julgados apenas flexibilizam a condição de ter emprego para estar no aberto, e em outros têm possibilitado um prazo maior para que se encontre o aludido ato preventivo de crime (trabalho):
VI – O fato de o reeducando não possuir emprego não obsta à concessão do benefício de progressão de regime, tendo em vista a dificuldade de reinserção de um ex-presidiário no mercado de trabalho. De acordo, com a jurisprudência deste Tribunal o artigo 114, I, da LEP dever ser interpretado com razoabilidade. Precedentes.
Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para cassar o v. acórdão do eg. Tribunal a quo e determinar a progressão do paciente ao regime aberto, fixando-se, ainda, o prazo de 90 (noventa) dias para que o paciente demonstre a obtenção de trabalho lícito.[2]
O que falta é declarar que o artigo 114, inciso I da LEP não foi recepcionado pela CF/88, deixando de ser aplicado.
Ademais, qual o conceito de trabalho para fins do artigo 114, inciso I, da LEP? Seria apenas o remunerado? Nesse caso estariam as mulheres que sempre foram “do lar”, que nunca exerceram atividade remunerada, mas sempre foram laboriosas em seus afazeres domésticos, cuidadosas com seus filhos e familiares, obrigadas, para conseguir o regime aberto, a ter um emprego? Perderam elas o direito de ser “do lar” após cumprirem uma pena?
Na prática essa condição tem motivado a ocorrência de mais crimes. Sim, pois sabemos que um não presidiário já tem dificuldade em encontrar emprego, imagina, então, um recém-saído do sistema prisional por cumprir pena de roubo (por exemplo). Apresentam, invariavelmente, declarações de emprego notadamente falsas, mas que, por não verificarem com mais cautela, são aceitas pelo MP e Juízo, num autêntico jogo de faz de conta. Tu fazes de conta que trabalha e eu faço de conta que a condição do artigo 114, I, LEP está satisfeita. E todos fazem de conta que o crime está prevenido pelo fato de alguém trabalhar.
O judiciário precisa enfrentar o tema e deixar de aplicar o artigo referido, eis que afronta o meu direito constitucional de ir e vir e de ficar a vadiar.
[1] Apesar do STF não ter enfrentado diretamente o tema, o fez, de forma transversa, ao reconhecer, em repercussão geral, a não receptividade, pela CF/88, do artigo 25 da Lei de Contravenção Penal, que em seu texto também faz alusão ao “vadio”, o que, de certa forma, já antecipa o entendimento da Corte sobre o referido artigo 59 da LCP. Do voto do Relator Ministro Gilmar Mendes extrai-se: “Desse modo, não há como deixar de reconhecer o anacronismo desse tipo contravencional. Não se pode admitir a punição do sujeito apenas pelo que ele é, mas sim pelo que ele faz, pois concluir de forma diversa seria aceitar, num Estado Democrático de Direito, o indesejado e combatido direito penal do autor (…).Desse modo, observo que a condição exigida pela norma de o sujeito ativo ser “conhecido como vadio ou mendigo”, como necessária para configuração do tipo penal afronta os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da isonomia, previstos nos artigos 1º, inciso III; e 5º, caput e inciso I, da Constituição Federal” (Recurso Extraordinário 583.523 Rio Grande do Sul).
[2] Superior Tribunal de Justiça – HC 332577 / RJ – j. 17-11-2015.

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